Lição de incerteza: errei no Enem uma pergunta sobre meu próprio livro
Se há algo preciso na literatura é seu perpétuo perigo de imprecisão. Se alguma certeza a literatura tem a oferecer, é a de que está fadada à incerteza, de que em seu mundo a imperfeição de sentidos sempre terá a palavra final. Essas sentenças podem parecer prontas demais, meras formulações do paradoxo que às vezes se converte em nosso grande vício de pensamento. Mas nunca as tinha sentido tão verdadeiras quanto agora, depois do estranho caso que esta semana se passou.
Desde o fim da tarde de domingo começavam a pulular as mensagens, simpáticas, festivas, até eufóricas. Havia caído uma pergunta sobre meu livro "A resistência" no Enem e os amigos se apressavam em me dar a notícia, em alardear que quatro milhões de pessoas haviam sido expostas no mesmo instante a um parágrafo meu, e que aquilo era motivo de grande honra. Senti de fato essa alegria vaidosa que jamais deveria render uma crônica. Mas senti também um súbito e inegável receio de que falhasse a minha comunicação com aqueles quatro milhões de jovens, que naquela tensa situação de prova poderiam odiar minhas abstrações, meus adjetivos excessivos, meus significados esquivos, minha sintaxe sinuosa demais.
O receio se agravou quando enfim bati os olhos naquela questão 29 e me vi perdido entre suas opções de resposta, quase todas razoavelmente exatas, quase todas à sua maneira próximas do que eu desejara dizer naquela passagem. Não costumo me sair mal em provas; como é necessário em tempo hábil formar convicção por uma resposta, escolhi a alternativa que me pareceu mais adequada e já me pus a esclarecer quem me consultasse, a D era a resposta certa. Não foi uma surpresa absoluta quando começaram a despontar os gabaritos revelando o meu vexame: eu havia errado uma pergunta sobre as intenções do narrador da minha própria obra.
Sim, não é a primeira vez que algo assim se dá, Caetano Veloso passou por vergonha semelhante no ano passado, mas eu confesso que sempre achei esses casos meio ridículos e meio falsos. Facilmente davam ensejo a um discurso anti-intelectual, à ideia de que críticos, professores, examinadores nada sabem, que são seres presunçosos querendo impor verdades para os próprios criadores. Ou então a críticas ideológicas despropositadas, que querem desqualificar um trabalho sério e cuidadoso pelo mero fato de partir de um tal governo. São discursos banais em que não me reconheço nem um pouco. Eu errara a pergunta sobre o meu próprio livro e estranhamente não me via indignado: sentia que não havia sido falha minha e nem dos examinadores.
Havia ali algo digno de nota que eu não sabia bem determinar, e que permaneceu incompreendido até dois dias mais tarde. Chegou-me então uma segunda prova construída em torno de um texto meu, um texto singelo em que eu contava um pequeno conflito entre as minhas filhas, usado num concurso para professor infantil feito pela prefeitura de Blumenau. Sobre o texto versavam dez perguntas bastante variadas, entre elas uma que pedia uma definição exata de sua natureza, se aquilo era uma narrativa, uma argumentação, um relato, uma descrição ou uma dissertação. A ausência da palavra "crônica", como eu o definiria, tornava tudo mais complicado.
Quem me mandava a pergunta queria afinal saber: havia ou não ficção naquela história que eu contara sobre as minhas filhas? Se havia ficção, em seu julgamento, só podia ser uma narrativa. Se não havia ficção, tratava-se de um relato. Eu me vi de novo perdido; nada no texto era inventado, tudo tentava corresponder com a máxima precisão atingível às ocorrências que eu testemunhara dentro da minha própria casa. Ainda assim me era impossível dizer que ali não houvesse ficção, porque a ficção é muito mais uma forma de construção textual do que um coeficiente de invenção, foi o que me vi a responder, porque se pode fazer ficção com fatos tidos por plenamente reais, porque a ficção por vezes chega a se tornar a própria realidade, porque ficção e realidade não são, em suma, em nenhum aspecto, antípodas.
Era isso. Ali eu chegava enfim a entender por que meu erro no Enem, ou por que o erro do Enem, não me causava nem espanto nem choque. Estávamos apenas diante de mais uma manifestação da literatura em sua complexidade, em sua infinita nuance, em sua natureza insondável. Não se espere da literatura, nem das mensagens dos escritores, nem das interpretações dos críticos, nem das deduções dos examinadores, nenhum tipo de exatidão. Essa expectativa é de todo contrária à vocação da literatura, que é mais rica e mais veraz quanto mais ambígua se mostrar, quanto mais resistente a reduções simplistas. É assim que ela continua a suscitar suas infindáveis perguntas, que podem muito bem ajudar a compor os exames nacionais, ainda que delas em última instância ninguém consiga depurar respostas corretas, nem mesmo os seus autores.
Eis a lição que a literatura tem a oferecer nesses sinuosos domínios do conhecimento: num mundo cioso demais de suas verdades, é a lição da dúvida irreparável, a lição do imperscrutável, do indefinível.
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