Uma palavra sobre as indelicadezas que vamos cometendo pela vida
Lapsos, esquecimentos, faltas, deslizes, cada um sabe de que são feitos os seus sofrimentos. Haverá palavra que redima essas pequenas falhas que vamos cometendo pela vida, distraidamente, sem dolo nem injúria nem indiferença? Não serei o único a caminhar por aí carregando comigo um pedido de perdão impreciso, de termos vagos, sem motivo nem destinatário definido. Talvez sejamos muitos os que perambulamos pelas ruas com um inconfesso espírito de confissão, sem saber bem de qual delito.
Por vezes me deparo com um rosto querido e, antes mesmo da celebração da surpresa, do abraço enérgico, das novidades resumidas, da promessa de profundas conversas futuras, antes mesmo da expressão da alegria me vem alguma culpa. Paramos os dois a meio passo de distância, por um instante imperceptível, e suspeito que estejamos ambos vasculhando a memória para conferir se antes falhamos, se algum negou ao outro uma atenção necessária, se desatendeu uma palavra amiga. Nunca descubro se errei e onde errei, mas o sentimento persiste depois da despedida, acho que tanto no outro quanto em mim.
Se escrevo agora sobre algo assim é porque confio mais na frase medida do que na palavra espontânea. Que a crônica é uma arte da delicadeza já se sabe demais, mas pouco se percebe quanto ela pode servir para reparar indelicadezas. E é claro que há algo excessivo nesse sentimento difuso de culpa que nos habita sem redenção possível, mas também há inúmeras ocasiões em que as faltas são reconhecíveis, e aguardam com paciência a ocasião de serem desfeitas. Nem sempre com um pedido de perdão, diga-se. Às vezes com outra palavra mais significativa, com um incerto acerto que relegue o erro ao esquecimento.
Penso agora em Cecília Meireles, na crônica tão bonita que escreveu sobre uma velhinha de Florença. Cecília escreve anos depois do ocorrido, tomada por inteiro por um sentimento antigo, que não perde sua força nem se deixa aniquilar pelo tempo, ela explica. Sofre pelo que fez com a mulher, e quer lhe dedicar palavras reparadoras, mas todas as desculpas que lhe dirige "permanecem longe, imóveis, nulas". O que ela fez, afinal, com essa pobre mulher?, pergunta-se o leitor já compadecido. Entrou em sua loja de coisas tão simples quanto belas, encantou-se com uma blusa colorida, tentou comprá-la, mas lhe faltaram as liras. Pediu que guardasse a blusa para ela, mas não conseguiu retornar no dia seguinte e logo teve que partir de Florença, faltando com a promessa que fizera à velhinha.
Um lapso, um deslize, nada que devesse suscitar tanto arrependimento. E ainda assim Cecília continua a se martirizar pelo erro, ainda que não entenda bem por quê. E porque não entende, e porque não se perdoa, é que escreve. A escrita se torna uma forma tortuosa de consolo, forma de expiar uma culpa que não se tem, ou de pedir perdão a quem não ouvirá jamais, a quem nunca chegará a ler. Somos nós, seus leitores, que a perdoamos no lugar da outra, muitas décadas depois do acontecido, e assim ela continua a dormir tranquila o mais profundo dos sonos.
Cada um sabe de que são feitos os seus sofrimentos, eu dizia, e é justamente com essa frase que Cecília termina seu texto. Escrevo esta crônica pensando nas inúmeras velhinhas de Florença que fui largando pelo mundo, nas promessas menores e maiores que não consegui cumprir, nos pedidos corriqueiros que não atendi, nos esquecimentos que têm me tomado tão seguidas vezes, percebendo-os mais tarde ou deixando que escapem de vez ao pensamento. Queria escrever uma crônica que redimisse tudo isso a um só tempo, uma crônica impossível que implorasse por uma ampla anistia, que apelasse afinal pela compreensão de todos, tão inapelavelmente distraídos.
Na verdade minto, e não posso num texto destes mentir. O caso é que há poucas semanas cometi um deslize específico, me fugiu por completo à lembrança um compromisso que eu tinha aceitado com prazer, e que me alegrava ter como perspectiva. Chegada a hora, estava desatento, desorbitado, habitando o mundo sem tempo que partilho com minhas filhas, e não compareci. Era um encontro com alunos de um colégio para discutir literatura e resistência — resistência política, suponho, não psíquica. Acho que hoje escrevo para que me desculpem, porque não quero que se passem anos e eles se tornem minhas velhinhas de Florença, e porque não quero continuar a vagar pelas ruas com um inconfesso espírito de confissão, à espera de algum perdão inaudito.
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