Ainda estão aqui: os brutos que tentam se perpetuar no poder
As ditaduras podem voltar, você deveria saber. Isso disse alguma vez meu pai quando me pus a questionar por que ele silenciava sobre seu passado, por que usava palavras esquivas para descrever sua atuação contra a ditadura argentina, a militância desarmada que rendera à família o exílio no Brasil. As ditaduras podem voltar, e é preciso todo cuidado com suas violências e seus ardis. Para alguém da minha geração, confortado em décadas de democracia, uma declaração como essa só podia soar extrapolada, alarmista, o comentário anacrônico de um homem assustado demais com os horrores que viu.
Quando menino, deixei passar incompreendidas algumas manifestações evidentes dessa sombra autoritária que paira sobre o continente, sobre os meus dois países. Vivendo em Buenos Aires, não entendi o que se passava quando tanques trataram de sitiar a cidade, em 1988, 1989, 1990, nos levantes dos carapintadas que queriam devolver os militares ao poder. Vivendo em São Paulo, não soube associar que o tenebroso massacre do Carandiru, em 1992, tinha como artífice o mesmo homem que comandara os sequestros, as torturas, os assassinatos da ditadura. O passado era algo distante e proscrito: eu não percebia os tantos braços com que ele ainda tentava estrangular o presente e submetê-lo aos seus domínios.
Foi pela literatura, sempre tão real quando se aproxima desses assuntos, que fui me dando conta dessa presença sinistra do passado, dessas décadas violentas que nunca terminam. Lendo "K.", romance de B. Kucinski sobre o desaparecimento de sua irmã, descobri as profundezas em que essas forças obscuras ainda vigoram no país: não basta terem torturado, matado e ocultado o cadáver de uma mulher, Ana Kucinski, continuam hoje a torturar psicologicamente sua família. Lendo "Ainda estou aqui", de Marcelo Rubens Paiva, sofri ao saber quanto é falha qualquer justiça: não basta que se revelem as circunstâncias exatas de um crime, do assassinato de Rubens Paiva por seus torturadores, para que se alcance qualquer punição aos envolvidos.
O fato é que ainda estão aqui, eles, os brutos, os crápulas de outro tempo que jamais deveria ter existido. E isso que em algum momento exigiu argúcia, atenção às minúcias, leitura das entrelinhas históricas, agora está escancarado para que todos vejam. As ditaduras podem voltar, e estivemos a ponto de sucumbir a um golpe novo, ao velho golpe que tantas vezes nos feriu, cujos horrores chegamos a conhecer tão bem. E o caso é ainda mais extremo desta vez porque não se tratou da quartelada de um poder paralelo, insubmisso, nem dos delírios risíveis de uma minoria inconformada com o resultado eleitoral. Não, o delírio golpista partiu direto do centro do poder, direto do palácio do presidente derrotado nas eleições, e chegou a ser muito mais real do que imaginaríamos.
Sim, eles ainda estão aqui, e torturam o país com suas loucuras, e tramam sequestros e assassinatos, e se recusam a arredar do poder. Eles ainda dispõem de uma força inadmissível, e é bizarro que arrebanhem uma parte da população em apoio aos seus crimes. Mas há uma vantagem em que insistam em seus delírios e seus delitos: a cada vez oferecem a chance de redimir o país em sua falha primordial, em sua desmemória, sua impunidade. É chegada a hora de puni-los enfim, exemplarmente, para que nunca mais se repita, para que o futuro contrarie o presente e já não se mostre refém do passado. A nós, que também ainda estamos aqui, a nós das velhas e das novas gerações que execramos os atos desses brutos, cabe a nós continuar na luta por alguma lucidez e alguma justiça.
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