Julián Fuks

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Opinião

A vida é o que acontece enquanto eles fazem planos

Há desses momentos absolutos na história do mundo que acabamos assumindo como próprios, como parte da nossa comezinha trajetória particular. Quem se esquece do que estava fazendo no instante em que dois aviões atingiram duas torres que nem preciso especificar? Quem ignora o que sentiu quando a pesada artilharia alemã investiu contra a frágil defesa brasileira, na mais bizarra das nossas derrotas, futebolísticas ou bélicas? São momentos que nos recusamos a encarar como remotos ou alheios, momentos em que colapsa a fronteira entre o público e o íntimo, entre o grandioso e o ínfimo, e que passam a constituir a história da nossa própria vida, por mais desimportante que seja.

E há momentos que poderiam ter sido tão trágicos quanto esses, ou mais trágicos ainda, se deles não tivéssemos escapado por um triz. Fiquei me perguntando o que se passava numa vida privada em 15 de dezembro de 2022, o dia exato para o qual alguns homens patéticos que ocupavam o mais alto poder planejaram o sequestro e o assassinato de um ministro do STF, e quem sabe, se tudo corresse bem, também do presidente recém-eleito. Onde você estava, anônimo e distraído leitor, quando uns poucos sujeitos sórdidos, munidos de armas e desfaçatez, quiseram irromper contra a escolha do povo e nos submeter aos seus delírios de poder? O que se passava em sua existência, talvez pacata e feliz, quando a república estava a ponto de cair?

Fui vasculhar alguns dos resquícios daquele dia, guardados na minha forma mais corriqueira de diário, a vasta troca de mensagens com a minha companheira. Não encontrei nada de cômico ou irônico, como o cronista em mim desejaria, não fui fazer natação à tarde, como Kafka anotou ter feito no dia em que a Alemanha declarou guerra à Rússia. O 15 de dezembro de 2022 era uma quinta-feira, acho que acordei entre as oito e as nove, passei a manhã com as minhas filhas, depois as levei para seu último dia de aula antes das férias, e à tarde tentei escrever, que era o que eu fazia na época, tentava. Dez dias antes meu pai morrera, e as horas ainda guardavam o silêncio e a comoção de sua ausência. Três dias depois a Argentina seria campeã da Copa do Mundo, e eu não poderia comemorar com ele.

O factual diz muito pouco, não chega a captar o espírito do momento. Nas mensagens que trocávamos por aqueles dias, o que me surpreende é certa tensão subjacente a tudo, certo pendor para a irritação. Falávamos bastante do nervosismo de Penélope, nossa filha menor que acabava de fazer três anos, e que parecia voltar a sentir de forma aguda meus momentos de ausência. Ter perdido o avô, ter visto seu pai perder o pai, talvez criasse nela um medo indizível de perder seu próprio pai, e por isso seu humor andava sombrio. Mas havia também uma tensão entre nós, os adultos, uma tensão que não entendíamos e que nos fazia trocar palavras um tanto ríspidas, para em seguida admitir que aquilo era estranho, que não sabíamos bem o que nos acontecia.

Agora percebo com mais clareza do que se tratava. Era uma irritação própria de tempos pretéritos, a irritação das notícias absurdas em série, o desconforto perene de ver no governo homens obtusos realizando as ações mais truculentas, um incômodo que se dissolvera um tanto com o resultado das eleições, mas ainda não tinha sumido por completo. O leitor talvez pense que estou exagerando, mas não, aqueles eram tempos duros, tempos tensos, e parecia que a tensão do mundo reverberava casa adentro. Ali se dava de fato, para muitos, uma confluência entre o público e o íntimo, entre o grandioso e o ínfimo. Em alguma medida, sem dúvida menos perigosa que a dos alvos diretos, estávamos todos sequestrados por aqueles homens, quase à beira de um certo assassinato, embora mais do ânimo que dos corpos.

Curiosamente, me fez bem visitar as mensagens daqueles dias, que agora já senti bastante mais distantes. O leitor anônimo talvez discorde de mim, talvez me acompanhe no ligeiro alívio, no sorriso mais frequente, na maior leveza. É certo que os personagens estão todos aí, vivos e ativos, ainda arrebanham seus apoiadores incompreensíveis, ainda seguem quase intocados por qualquer justiça. É certo também que tantas outras urgências nos atordoam, e que há planeta afora um indissolúvel sentimento de fim do mundo. Ainda assim, é bem melhor poder acompanhar isso tudo sem que estejamos tomados por inteiro pela loucura circundante, sem que a vida pública atropele com tanta fúria os nossos dramas comezinhos, a nossa pacata vida íntima.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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