Julián Fuks

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Opinião

Amar um lugar: sobre o forte apego que podemos sentir por um espaço

É possível amar uma casa, amar umas quantas paredes e o aparente vazio que elas encerram. Costuma-se tomar por imprecisas ou metafóricas declarações superlativas como "amo este lugar", "amo esta rua", "amo esta cidade", mas o caso é que se pode sentir, sim, a mais forte afeição por um espaço. Sobretudo pelo espaço de uma intimidade ou de uma história particular, por aquele que julgamos próprio, por aquele que ocupamos longamente com o nosso corpo. Aquele que se confunde com o nosso corpo e ao mesmo tempo o excede, o extrapola para além de nós. "Porque a casa é o nosso canto do mundo", quem diz é Gaston Bachelard, "o nosso primeiro universo", "um verdadeiro cosmos".

Se o assunto é o amor por uma casa, eu teria que falar da casa da minha infância, de seus jardins desregrados em que tudo crescia mesmo quando nada era plantado, de sua sala de vidro que esbanjava céu e cidade, de sua mesa de jantar cenário de diálogos reais e literários, de seus quartos carregados de uma história longa e indevassável. Não sei por que uso os verbos no passado se a casa ainda está lá, se ainda abriga a minha mãe em seus cômodos largos demais. O amor pela casa ali se confunde com o amor pela mãe, isso está claro, duas afeições extremadas que nossa família não tem o hábito de declarar. Certas profundezas às vezes é melhor deixar inexploradas, sinto, e talvez por isso adie escrever a história daquele espaço. "A casa primordial e oniricamente definitiva deve guardar sua penumbra", Bachelard sabe bem explicar.

Segue em sua poética do espaço: "Se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz." Se eu saí daquela casa, vinte anos atrás, não foi porque ela deixasse de abrigar os sinuosos caminhos de um imaginário particular, ou porque não restasse sonho ali a sonhar, mas porque me era desejável construir um sonho a dois. Para isso valia inventar a história de um espaço novo, e assim fui morar com a minha companheira num apartamento apertado, de janelas módicas, sem céu nem cidade à mostra, mas muito próprio para voos interiores. Das relações que ficaram para trás convém desconfiar: não sei se cheguei a amar aquele apartamento, ou se amei o amor que ali pudemos inaugurar, e que até hoje experimentamos.

Pelo apartamento atual o sentimento é bem mais indubitável: me sinto tomado e embevecido por sua energia, sua pulsação. Durante muito tempo preferi, como seria de se esperar, os espaços mais próprios ao silêncio, à leitura, à introspecção. Associava a paz à reclusão, e queria paredes que me separassem dos outros, que me garantissem uma solidão amparada — uma que não se confundisse com desalento ou desamor. Agora, desde o nascimento das minhas filhas, desde que elas têm povoado a casa de riso e rusga, de grito e balbúrdia, algo mudou. Minha ideia de felicidade se fez mais turbulenta e ruidosa. "O ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo", diz Bachelard. Abrigar as filhas em minha casa, em minha vida, fez com que eu me transformasse em definitivo, e transformasse também o meu ideal de espaço.

Não por acaso, porém, me vi impelido em tempos recentes a reconstituir algum espaço pessoal, a buscar em outro lugar alguma quietude, o meu esquecido sossego. Há poucos dias consegui concretizar enfim o velho conselho que Virginia Woolf dava às mulheres, dispondo agora de um quarto próprio, um teto todo meu. Minhas tardes têm se dado nesse escritório novíssimo, um espaço sem história, sem qualquer resquício de um velho morador, desprovido de todo passado e toda memória. Poderia imaginá-lo então sem graça, sem vida, vazio de sentido, mas já consigo antever a história futura que pode se dar aqui, onde agora escrevo, a profusão de palavras novas que podem irromper deste silêncio.

Este texto, por exemplo, por banal e perecível que seja, não teria existido se eu aqui não estivesse. Não teria existido se ontem, quando eu partia ao fim do expediente, eu não tivesse me virado para trás e descoberto as sombras que se alongavam em formas novas em direção aos meus pés. Se eu não tivesse olhado uma última vez para o espaço modesto e sussurrado para mim mesmo, ao fechar a porta, amo este lugar, numa confissão precipitada e imatura de que talvez eu devesse me envergonhar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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