As fases da calvície: pensamentos de uma mente explícita demais
Todo princípio de calvície antecede em muitos anos a calvície efetiva, foi o que percebeu desde cedo. Como se o problema se iniciasse cabeça adentro, bem antes de qualquer manifestação externa, visível aos olhos alheios. Tinha ainda uma cabeleira farta quando alguns maledicentes começaram a apontar seus avós, tios, primos mais velhos, insistindo no vaticínio da futura escassez. Pensou em Borges: como Borges sabia desde criança que um dia seguiria os passos do pai e ficaria cego, ele sabia com larga antecedência que um dia seria calvo. Era uma vantagem, tinha tempo para aprender, como todo calvo deveria, a aceitar seu destino inexorável com mais tranquilidade do que desespero.
Já um jovem de testa ligeiramente alta, começou a ouvir ao redor que aquela era uma época nova, com novos e miraculosos produtos, que o futuro não estava tão selado assim e lhe cabia lutar contra o inelutável com obscuras armas preventivas. Informou-se sem muito interesse, no fundo não reconhecia que aquele fosse mesmo um problema. Decidiu sem convicção: não quis trocar a ameaça talvez infundada de calvície por outra talvez infundada de impotência, ou de incertas complicações cardíacas. Seu couro cabeludo que tivesse paciência e esperasse solução mais segura: os outros órgãos em questão eram bem mais importantes do que ele.
Uma década ou duas mais tarde, a inconveniência já não era tão especulativa, trazendo suas primeiras evidências incontestes. Alguns amigos o reconheciam pelas costas, pela nudez ainda sutil do cocuruto. Em dias turbulentos, o vento impudico podia entrar sob a franja que ele penteava para frente, como sob as saias de uma Marilyn Monroe, revelando também sua intimidade contrafeita. Agora só lhe falavam de implantes: tinha muitos cabelos nas laterais e na nuca, poderia rearranjá-los pela cabeça. Aquilo o tentava por um segundo, mas não o convencia: como investir nisso o dinheiro que não sobrava e, mais importante, como convencer a si mesmo da validade de um ato tão vaidoso, como torná-lo coerente com o sujeito ponderado e discreto que desejava ser?
O caso é que começava a compreender aquilo que o redimiria no futuro, começava a perceber a inutilidade absoluta dos cabelos. Olhava-se no espelho e não encontrava horror nenhum: não havia nada a temer na linha indiferente que recuava a cada mês, revelando apenas uns milímetros a mais de pele. Não enxergava nada de obsceno naquela forma peculiar de exibicionismo do escalpo. Pelo contrário, entendia cada vez melhor a citação anônima que lera numa crônica de Paulo Mendes Campos, de que "o cabelo é uma coisa que serve para ocultar a calvície", e que afinal um homem calvo pode ser não mais que um homem franco, resistente a essa hipocrisia que toma a cabeça dos outros.
Não chegava a aceitar por completo o valor maior que a cultura atribuía aos cabelos: sua insinuação de juventude, seu poder de atração e sedução de desconhecidos quaisquer. Isso podia ter seu impacto, é verdade, mas para esse fim sempre sentira mais eficientes os olhares e as palavras, ou as afinidades profundas reveladas cada uma em seu momento. Não chegava a entender por completo o ímpeto com que a cultura ria dele, ria da calvície dos calvos, se não havia de fato nenhuma perda efetiva na perda dos cabelos. Talvez fosse isso o que deixasse à vontade os tantos comediantes corriqueiros: aquela era a última possibilidade de tirar sarro do infortúnio alheio, já que não se tratava, na prática, de infortúnio nenhum.
Foi só mais velho, porém, quando já somava àquele traço característico seu outras manifestações clamorosas das décadas, foi só mais velho que flagrou naquele riso algum nervosismo, notando um discreto sofrimento nos que faziam troça dele. Entendeu enfim que a calvície era mesmo um problema, mas um problema dos outros. Olhavam para ele e viam o tempo, viam refletida em sua careca a passagem dos anos, encaravam ali a imagem invertida de seu próprio envelhecimento. Riam dele, riam dos calvos, para não chorar consigo mesmos. Mas não deveriam, pensou enfim, em vez disso poderiam dar valor a essa consciência do tempo. Sempre lhe pareceu mais proveitoso levar a vida com a certeza de que ela finda, de que um dia tudo se faz escassez.
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