Para que serve um crítico literário? O exemplo brilhante de Beatriz Sarlo
Há quem pense que seja um sujeito dispensável, o crítico literário. Seu módico papel se resumiria a dar um juízo favorável ou desfavorável a um livro, ou a explicá-lo com didatismo para leitores desamparados. O crítico, nessa visão, teria algo daquele cartógrafo de Borges, que para produzir o mapa perfeito de um reino acaba por desenhar um documento imenso, cuja extensão coincide exatamente com o território cartografado. O crítico, ao alcançar sua perfeição, faria o mesmo com o livro criticado, produziria uma nova versão idêntica à original, fiel a ela em cada detalhe. E, de passagem, emitiria seu juízo categórico: vale muito ou não vale nada.
É uma visão equivocada. A um crítico literário não cabe essa subordinação à obra comentada, nem o relato banal de sua experiência de leitura, nem uma estimativa do valor de cada autor em avaliação sumária. Um bom crítico não produz mapas de mundos alheios, e sim mundos próprios. Toma a literatura como cifra de algo maior, dela se valendo para explorar os sentidos da cultura, da humanidade, da realidade, de qualquer uma dessas instâncias indevassáveis tão difíceis de nomear. A literatura é seu ponto de partida para compreender o mundo, para pensá-lo com palavras próprias, e por isso ela lhe vale tanto, tanto o atrai e o convoca. Pensava nisso enquanto lia sobre a morte da argentina Beatriz Sarlo, enorme intelectual das letras latino-americanas, pensadora de inúmeros fenômenos contemporâneos, culturais, políticos, urbanos, que no entanto tinha na crítica literária sua atuação essencial. É perturbador ler seus textos sobre o lamentável estado de coisas na política argentina. É estimulante ler seus ensaios profundos sobre Walter Benjamin. É encantador acompanhar sua visão sobre a constituição de Buenos Aires, tomando a cidade como livro e lendo os sentidos ocultos em suas fachadas, em seu peculiar traçado urbanístico. Mas é sobretudo iluminador percorrer sua crítica farta sobre a literatura argentina, descobrir os mundos novos que ali se abrem, tão diferentes e a um só tempo tão reveladores do velho mundo em que nos encontramos, ela e nós.
"É densa, convulsa e muitas vezes enigmática sua ininterrupta vocação interpretativa": com essas palavras Sarlo descreve Benjamin em seu ofício de crítico, mas poderia muito bem estar descrevendo a si própria. Assim como os de Benjamin, os textos de Sarlo não se resolvem por inteiro, preservam um equilíbrio instável, sem chegar a compor uma teoria específica que levaria seu nome. Não há uma visão monolítica a ser assimilada e exposta por críticos posteriores, e sim um convite a levar adiante o seu movimento, um apelo ao pensamento coletivo. Quem lê seus textos se vê levado a partilhar de suas preocupações, suas análises, suas indagações, até que disso tudo possa se apoderar.
Talvez por isso um de seus grandes feitos tenha sido a composição de um novo cânone para as letras argentinas. Cada autor consagrado sobre o qual ela se debruçou recebeu uma luz nova: Sarmiento ela retratou como um sujeito que desconhecia sua própria identidade e assim ajudou a criar uma identidade argentina, Victoria Ocampo ela descreveu como tradutora de mundos distantes que coincidiam com os seus, Borges ela visitou em seus primeiros livros, dando a ver um autor periférico e provocativo. Mas seu efeito mais poderoso se deu com os novos nomes que ela encampou e leu com esmero, Alberto Laiseca, Sergio Chejfec, Fogwill, Alan Pauls, deles se valendo em debates profundos sobre a possibilidade da escrita na contemporaneidade.
Nunca a encontrei, nunca conversei com ela, mas não tenho dúvida da imensidade do que lhe devo. Foi por sua leitura sistemática e entusiasmada de Juan José Saer que uma professora resolveu abordá-lo no curso de literatura argentina da USP. Aquela querida professora, Ana Cecilia Olmos, se tornaria então minha orientadora no mestrado que fiz sobre Saer, me debruçando anos sobre sua impossibilidade performática de narrar, em diálogo complexo com a questão mais vasta da morte do romance. Foi minha entrada um tanto de viés nessa questão que me marca até hoje, que me determina como crítico e como escritor, que define grande parte da minha visão de literatura, aquela que procuro transmitir a alunos e leitores.
Assim são os grandes críticos literários: fundam um universo à parte que se relaciona de mil maneiras com o universo que julgamos real, aquele que habitamos e que erroneamente acreditamos não ser feito de palavras. Parecem estar falando de uma especificidade qualquer, de uma sequência de frases de um autor desconhecido numa página já esquecida da literatura, mas na prática estão falando sobre o nosso mundo e incidindo sobre ele de formas inescrutáveis. Você pode nunca ter ouvido falar de Beatriz Sarlo, pode não ter interesse nenhum por literatura argentina; ainda assim vive num mundo que foi por ela sutilmente transformado, vive os efeitos ainda que discretos de sua existência. Para alterar os rumos de uma cultura e deixar insondáveis pensamentos que se replicam e se alastram, é para isso que serve um crítico literário, arrisco dizer.
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