Julián Fuks

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Opinião

Que sejamos inventivos o bastante para criar novos desejos

Abro este ano com hesitação, de novo me sinto incapaz de decifrar o espírito do tempo. Olho as pessoas, olho as notícias, abro a janela e tento medir com as mãos a temperatura da brisa: nenhum parecer é possível. Não sei dos outros, não sei se estão animados ou apreensivos, alegres ou melancólicos, esperançosos ou lívidos, se antecipam grandes feitos e amores ou temem dores, perdas, partidas. Da limpidez de uns anos atrás resta pouco, daquela raiva impoluta, o horror, a indignação, o pessimismo. O novo ano que assoma é muito mais desconhecido, traz o mistério dos calados, dos taciturnos, ciosos de si.

Um cronista que não consegue compreender seu tempo tem sempre a opção de se debruçar sobre si mesmo. Mas nisso me vejo tão mudo quanto o ano ainda não acontecido, falho miseravelmente também em me compreender. Ao amigo que me perguntou, na indolência do diálogo praiano, na despretensão única das conversas em trajes de banho, o que eu pretendia fazer do ano por vir, só consegui responder com um silêncio profundo. Era como se indagasse de súbito o segredo da existência, ou me pedisse que resolvesse ali na areia a perfeita quadratura do círculo. Ergui os ombros, ergui as sobrancelhas, comprimi os lábios, fiz o que fazem os corpos quando as palavras os desertam; acho que nada sei de mim neste momento.

Talvez por isso me veja tão arredio aos cumprimentos de fim de ano, aos votos de luz e saúde e felicidade e sucesso e paz e dinheiro, todo esse amálgama de palavras que se repetem em arranjo aleatório sem nada dizer. Leio a profusão de mensagens e sinto a tentação de responder com o cinismo que poucas vezes me visita, algo mais próprio de um Millôr Fernandes: "Ano-Novo, pois é. Coisa bem velha." Sinto que se constrói alguma expectativa pelos dizeres de um escritor, alguma esperança de que suas palavras tracem os contornos incertos do futuro indefinível, de que ajudem a revelar afinal em que época estamos e qual humor devemos vestir. O caso é que o escritor não sabe, está perdido, está vazio de expectativas como poucas vezes se viu.

Mas ninguém está esperando nada, diz a minha companheira convertida numa cabeça flutuante atrás da porta do escritório, acaba logo com isso, manda as suas palavras otimistas de sempre que tudo há de ficar bem. Está impaciente para que retomemos a insensatez vadia das férias, e há justiça em sua impaciência, é um ano difícil o que deixamos para trás, ela e eu.

De repente me vejo então disposto a interpretar com otimismo esse silêncio que toma o meu peito, e, sim, é fato que algo novo e imprevisto ocupará o lugar desse vazio — como acontece com toda vaguidão, há sempre nela algo por nascer. É bonito que iniciemos um tempo tão desprovido de certezas e juízos severos, tão carente também de desejos conhecidos. Antes de buscar qualquer realização banal ou rasteira, será preciso então decifrar o que se almeja, ou mesmo construir aquilo que se quer. Eis uma boa resolução de ano novo, para mim e para o país que desconheço, ou quem sabe para o insondável outro que porventura me lê: que neste novo tempo saibamos alargar as fronteiras da existência, que sejamos inventivos o bastante para criar novos desejos, novos sonhos, novos prazeres.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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