O fim de quase toda memória: então é assim que as histórias acabam
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Foi há um tempo incerto, um senhor se aproximou num museu, queria me dizer algumas palavras. Pensei que viesse me repreender pela alegria ruidosa das minhas filhas ao redor, mas seu semblante era amigável. Não queria mais que me contar uma história. Sabia que eu me chamava Fuks, assim grafado com k, era um Fuks com k também ele. Queria contar que muitas décadas atrás, ainda jovem e imberbe, travara uma conversa das mais agradáveis com um outro Fuks, um homem que por qualquer indefinível razão ele nunca esqueceu. Era um peleteiro de Buenos Aires, comentou, seria por acaso seu parente? O acaso de fato brincava conosco através dos tempos. Sim, aquele devia ser o meu avô, alfaiate de peles e chapéus do bairro de Almagro, um homem que passei longe de conhecer, morto há mais de meio século.
Saí dali um tanto inquieto ou intrigado, ou tomado por algum outro adjetivo que me faltava. Meu impulso imediato teria sido contar a história ao meu pai, não estivesse ele também morto. Em minha mãe o caso abriu um meio-sorriso, embora menos alegre do que incrédulo: um encontro banal tão memorável lhe parecia uma improbabilidade, e era certo que tal homem podia ser ou não ser o pai do meu pai. Ela mesma não teria recurso nenhum para confirmar: quando chegou à família ele já não existia, não tiveram tempo de se conhecer, sogro e nora. Foi então que me dei conta do que me fascinava na história: aquele senhor que me abordou no museu numa tarde inexata, e que agora não sei onde está, é o único sujeito ainda vivo que chegou a conhecer o meu avô, ou ao menos o único que pude ouvir falar.
Sei muito pouco desse avô, Abraham, um personagem que meu pai evitava em seus relatos, talvez porque não fosse tão agradável quanto o homem que se instalou na memória do outro. Tinha seus motivos para isso, em todo caso. Muito jovem se viu obrigado a deixar a vida para trás, deixar a Transilvânia de sua infância, fugir do antissemitismo que se fazia ameaçador. Em pouco tempo soube da dizimação de seus pais e de todos os demais familiares. Restou-lhe a mulher que amava, Ileana, com quem teve dois filhos e foi feliz por alguns anos, até que ela adoeceu e morreu ainda bastante nova. Casou-se de novo para não estar só, com uma mulher rude e rigorosa, nesse ponto meu pai insistia com palavras enfáticas. Era uma casa por vezes sombria: um dia Abraham quebrou o violino do meu pai, ainda menino, apenas porque ele brincava de tocá-lo como se fosse um violoncelo.
Mas há uma razão para que eu mesmo não tenha esquecido do encontro com aquele senhor no museu, há uma razão para que decida contá-lo agora. Acho que o que me interessa na história não é tanto a figura renascida do meu avô, e sim certo pensamento sobre a finitude. Então é assim que as histórias acabam, é assim que as existências se dissipam. Passou-se meio século desde a sua morte, e neste momento já não resta quase nada desse homem que gerou o homem que me gerou. Sua vida tornou-se um breve parágrafo talhado de acontecimentos trágicos, e um vago diálogo de todo carente de palavras travado num navio incerto na década de cinquenta ou sessenta. Sobram apenas estas lucubrações imprecisas e talvez injustas que faço a seu respeito, se porventura esta página durar mais que um dia ou dois.
Nada mais, em pouco tempo ele não será mais nada, não haverá dele nenhuma memória direta ou indireta, como também não resta nada de seus pais, meus bisavós, cinzas misturadas às cinzas de um milhão de outros, em Auschwitz. Vou me preparando para contar essa história às minhas filhas, mas por ora brincamos mais com outras coisas. Conto que a família vem da Transilvânia, e que portanto somos parte de uma linhagem de vampiros, e elas riem do desatino do pai. Enquanto o digo, não esqueço que vampiros são imortais, e que talvez haja nessa fantasia algum desejo de perdurar, algum desejo de que outros tivessem perdurado.
Isso tudo soa um tanto melancólico, posso notar, mas não é só isso o que sinto diante dessa história de fins súbitos ou demorados. Acho que me sinto estranhamente mais livre quando esses pensamentos me visitam, quando adquiro uma consciência mais aguda da finitude. Que estejamos neste mundo por um tempo restrito, que tudo vá se apagar cedo ou tarde, é um detalhe bastante favorável à vida, à ousadia, à liberdade. É o que nos permite brincar mais tranquilamente com o tempo e suas palavras e seus acasos.
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