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Trudruá Dorrico

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Abril antirracista: a literatura indígena em destaque

Julie Dorrico

31/03/2021 06h00

O sujeito indígena contemporâneo ainda é visto com suspeição pela sociedade dominante. Isto porque durante o calendário escolar, mas em especial no famigerado mês de abril, ainda vemos a re-encenação colonial de dois eixos que recrudescem tais suspeitas, a saber, o eixo da desumanização e da integração. Embora superadas juridicamente na Constituição Federal (1988), vemos na mentalidade da cultura nacional a repetição da desinformação sobre identidades e direitos indígenas.

O primeiro eixo diz respeito ao princípio de "humanidade". Linda Tuhiwai Smith, socióloga Maori (Nova Zelândia), é assertiva quando desvela que os imperativos desumanizantes - entre eles a primitividade, ignorância, animalidade e preguiça - criaram o distanciamento para justificar várias formas de extermínio e domesticação sobre os povos indígenas.

Daniel Munduruku lembra que no Brasil colonial a dúvida sobre a humanidade dos nativos foi agenda papal de Paulo III, que escreveu uma carta em 1537, indicando que sim, os indígenas teriam alma e, portanto, eram capazes de ser convencidos a ingressar na doutrina eclesiástica. A linguagem da salvação não poupou a vida das populações originárias, pelo contrário, foi base para a escravização e justificação para apropriação de grandes extensões de terras.

O segundo eixo, o da integração, vincula-se ao primeiro, e vem para minar as identidades indígenas. A integração é uma linguagem de salvação que redireciona o seu foco para o mito da civilização e estabelecimento de uma identidade nacional. Segundo a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, o Diretório Pombalino, de 1757, política para fomentar a miscigenação indígena, serviu como pretexto para espoliação das terras dos aldeamentos criados para instalar os indígenas das Guerras Justas e regime de descimentos, formas de escravidão jesuíticas e coloniais. A Lei das Terras, Lei nº 601 de 1850, usou a miscigenação imposta pelo Diretório para declarar extintas os aldeamentos de Goiás, Ceará, Sergipe, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, extinguindo o direito dos indígenas sobre aquelas terras.

Beatriz Góis Dantas esclarece que a lei é um marco negativo que iniciará a tradição de questionar a identidade indígena, pois "se até 1840 ninguém punha em dúvida a identidade indígena dos habitantes dos aldeamentos, a partir da Lei das Terras haverá, ao contrário, esforço explícito de usar a mestiçagem para descaracterizar como indígenas aqueles de quem se cobiçavam as terras". A desumanização e a dúvida sobre a identidade indígenas são, como podemos perceber, parte do projeto colonial em usurpar territórios físicos e simbólicos indígenas.

Frases como "você fala português", "vive na cidade", "usa tecnologia" são frequentemente usadas para minar a identidade do sujeito indígena contemporâneo. Tais frases existem na mentalidade da sociedade dominante porque tiveram fundamentação jurídica ao longo dos séculos. Tais princípios estão presentes no Estatuto do Índio, Lei nº 6.001 de 1973, que declarava a completa integração do indígena à civilização, para a plenitude da capacidade civil, por meio dos critérios estabelecidos no artigo 9º: de ter idade mínima de 21 anos, conhecimento da língua portuguesa, habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional, razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional. O eixo da integração foi superado na Carta Magna, quando afirmou o direito à identidade indígena e a cidadania brasileira, mas persiste no uso cotidiano para invalidar a presença e direito de existir indígenas.

O intelectual Stuart Hall nos ensina que os três grandes pilares de sustentação da identidade e cultura nacionais são a história, a língua e a literatura. Nesse sentido, Bruno Kanela, liderança de seu povo e advogado, alerta que no mês de abril as datas comemorativas no Brasil precisam ser discutidas seriamente para contemplar os sujeitos e povos indígenas na pauta antirracista. O dia 19 quando não trabalhado em alinhamento à consciência indígena acaba por reforçar o estereótipo do "índio genérico e folclórico" colaborando para a destruição das subjetividades indígenas; o dia 22, por sua vez, declarado como data de "Descobrimento" ao reforçar a versão dos colonizadores como única e oficial, exclui os povos indígenas de seus direitos originários.

Para um abril antirracista indígena é preciso lembrar a importância da pluralidade de povos, de línguas e de literatura indígena na desconstrução de imagens e narrativas construídas para subjugar os indígenas. Do ponto de vista indígena, as representações literárias vêm reaver a autoestima, celebrar o pertencimento, reconectar a relação humana com as não humanas, adiar o fim do mundo nas palavras do mestre Ailton Krenak.

Para colaborar na formação de educadores da rede básica e universitária, durante o mês de abril farei indicações ao fim das publicações que já versam sobre educação e iniciativas indígenas, de obras e autores indígenas que poeticamente informam sobre si e suas culturas contemporaneamente.

Indicação de obra:

Nós: uma antologia de Literatura Indígena - Divulgação - Divulgação
"Nós: uma antologia de Literatura Indígena" (Companhia das Letrinhas, 2019). Organizada pelo ilustrador Mauricio Negro, traz dez contos de autoria indígena.
Imagem: Divulgação

Indicação de autor:

Edson Kayapó - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Edson Kayapó é historiador e educador indígena. Suas palestras são voltadas à educação antirracista indígena
Imagem: Arquivo pessoal

Indicação de autoria:

Márcia Kambeba  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Márcia Kambeba é poeta, escritora, artista, fotógrafa, geógrafa. Palestra sobre povos indígenas e a importância do reconhecimento dos indígenas como contemporâneos
Imagem: Arquivo pessoal

Indicação de obra:

Daniel Munduruku - Divulgação - Divulgação
"Crônicas Indígenas para rir e refletir na escola" (Moderna, 2021), de autoria de Daniel Munduruku, a obras traz situações cotidianas para refletir sobre racismo, identidade, trânsitos e direitos indígenas.
Imagem: Divulgação