Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Folclore brasileiro versus Literatura Indígena: entenda a diferença
No dia 22 de agosto é celebrado no Brasil o Dia do Folclore. Esta data foi outorgada pelo decreto nº 56.747, em 1965, na Ditadura Militar, em alusão à carta de William John Thoms, publicada no dia 22 de agosto em 1846, que cunhou o termo Folk-lore, cuja etimologia traduz-se como conhecimento/saber do povo.
Buscando a identidade nacional brasileira na literatura, os estudos folclóricos se voltaram nos séculos 19 e 20 para narrativas consideradas populares e regionais com vistas a firmar a brasilidade da cultura nacional. Enquanto os corpos negros e indígenas eram assassinados nos séculos passados - e o são ainda hoje -, as narrativas, os seres, as propriedades intelectuais desses povos eram tomados como símbolos da nacionalidade do país.
Como eugenistas, Romero e Lobato defendiam o mito da democracia racial, isto é, a ideia de povo brasileiro formado pelas três "raças". O projeto colonizador previa o extermínio físico desses povos. Paradoxalmente, usavam a apropriação dos conhecimentos imemoriais negros e indígenas para forjar a identidade brasileira como produto das três "raças".
O estudo folclórico, já próximo das ciências humanas e sociais no país, graças a Mário de Andrade, ganhou fôlego na década de 1940, com a UNESCO que recomendou o estudo e preservação do folclore nacional. Para o país, isso significou a criação da Comissão Nacional do Folclore, na data de 1947. O desdobramento da Comissão foi a organização do I Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, em que participam Câmara Cascudo e Florestan Fernandes, cânones da academia e literatura brasileira. O documento resultante do I Congresso ficou conhecida como Carta do Folclore Brasileiro, onde se estabeleceu que o estudo do folclore era parte das ciências antropológicas e culturais.
Folclore e antropologia
No início do século XX, a antropologia insistia que os povos indígenas eram pré-modernos (tradicionais, daí a razão de eu refutar o termo), a-históricos, "categoria transitória", isto é, povos que na linha evolutiva da humanidade estavam no estágio inicial, mas com assistência do Estado, chegariam à civilização, ao posto de "integrados" à sociedade nacional, seriam, enfim, civilizados. A visão racista proporcionou ao Estado a desarticulação de sociedades e fomentou o ataque à identidade indígena que só seriam superadas juridicamente em 1988, com a promulgação da Constituição Federal.
O Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais, apenas em 1918 seria reduzido a sigla para SPI, criado pelo decreto nº 8.072/1910 foi a instituição responsável por acompanhar os povos indígenas na pseudo "transitoriedade". Roquette-Pinto, antropólogo, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Academia Brasileira de Letras, Associação Brasileira de Antropologia, também era eugenista. A antropologia e a literatura caminharam para a formulação de tradição popular e oral, a partir dessa visão eurocêntrica e excludente.
As características do folclore, elencadas por Câmara Cascudo como antiguidade, persistência, anonimato e oralidade são espelhos das narrativas e saberes indígenas. Os povos indígenas, porém, foram impossibilitados de qualquer reivindicação autoral de seus conhecimentos e espiritualidades porque eram desprovidos compulsoriamente de humanidade e direitos civis. Quando a Carta Folclórica diz que o folclore é a "maneira de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular", ela está defendendo o sentir e pensar do povo brasileiro, definida como identidade dominante (de ascendência europeia), que não reconhece os indígenas e negros como autores das suas narrativas, espiritualidades e propriedades intelectuais, reduzindo-as à "tradição popular".
Na lógica do capitalismo, essa "tradição popular", do povo, é tomada por escritores (com afinidade ideológica colonizadora) que insistem no apagamento da autoria e das origens desses saberes. Tais obras publicadas como folclore reiteram a identidade nacional da literatura brasileira e sub-repticiamente o mito da democracia racial. Abdias Nascimento e Rodney William vão mostrar como tal apagamento e folclorização (muitas vezes demonização) das espiritualidades negras e indígenas vão alimentar no imaginário nacional o racismo contra eles/nós (indígenas e negros).
Literatura Indígena
Desde a década de 1990, com a conquista de direitos civis e as identidades indígenas, os escritores indígenas disputam por meio da narrativa as origens de seus encantados e de suas propriedades intelectuais. Na literatura indígena emergem obras que mostram a diferença nítida do pertencimento dos seres boto, curupira, saci aos povos indígenas. A seguir indico algumas obras que deveriam ser utilizadas de forma comparada na sala de aula e nos estudos folclóricos, para evitar a prática da história única, ou da identidade única na literatura nacional.
Kumiça Jenó: narrativas poéticas dos seres da floresta (Editora Underline Publishing, 2021), da escritora Márcia Kambeba, traz o Saci, Mapinguari, Curupira e outros seres desde a perspectiva indígena Omágua/Kambeba. Disponível em: Kumiça Jenó: Narrativas Poéticas dos Seres da Floresta.
A cidade das águas profundas (Editora Melhoramentos, 2013), de Marcelo Manhuari Munduruku, apresenta o ser boto para além da mistificação do homem que se metamorfoseia em peixe e vice-versa engravidando meninas, mas a partir da crença do povo Munduruku nesses seres que tem humanidade, vivem em sociedade e ligação espiritual com o território do povo. Disponível em: Cidade das Águas Profundas - Marcelo Manhuari Munduruku - Livraria Maracá
Ajuda do Saci, de Olívio Jekupé (Editora DCL, 2006). A obra traz o encantado que pertence à cultura Guarani na contemporaneidade, mostrando por meio da literatura como a espiritualidade se mantém entre o povo independente do espaço e tempo em que vivem os indígenas guaranis. Disponível em: Ajuda do Saci. Kamba´i
As pegadas do Kurupyra, de Yaguarê Yamã (Editora Mercuryo Jovem, 2008), defende que este encantado é na cultura maraguá um protetor da floresta, com pertencimento ao povo, com família, especificidades próprias. A obra sinaliza que a degradação da floresta é também a destruição da morada dos encantados. Disponível em: Livro - Pegadas do Kurupyra, As em Promoção | Ofertas na Americanas;
Awyató-pót: histórias indígenas para crianças, de Tiago Hakiy (Editora Paulinas, 2011). Aqui conhecemos a origem da cobra-grande para o povo Sateré-Mawé e a sua ligação com o território ancestral. Disponível em: Awyató-Pót: histórias indígenas para crianças - Tiago Hakiy - Livraria Maracá.
Plantando sementes
A literatura indígena é uma expressão dos povos originários. É a reivindicação da identidade invisibilizada no Estado-nação Brasil. No Brasil, estima-se que há 60 escritores indígenas, pertencentes a povos indígenas diversos, falantes de 274 línguas. Cada povo tem uma memória, história e ancestralidade. Tais valores irão aparecer na literatura indígena porque os escritores têm essa identidade coletiva. Para avançarmos numa democracia, nos últimos tempos mais ameaçada, é preciso cada vez mais reconhecermos a diversidade étnico-racial existente no país.
Percebemos que a política nacional conduziu a produção cultural brasileira, traduzindo suas mais perversas decisões. Nesse sentido, o folclore foi - e é - uma ferramenta de dominação cultural. Se o folclore é constituído de etnocídio indígena e negro, não podemos mais aceitar ingenuamente sua expressão literária na sala de aula. Urge uma educação étnico-racial na formação dos educadores e o estudo comparado do folclore com a literatura indígena e negra.
Quando defendemos o reconhecimento das identidades e literaturas marginalizadas, buscamos a reapropriação política, conceito formulado por Rodney William, que pretende ser uma resposta às opressões, ao poder hegemônico. A reapropriação política é a afirmação dos valores culturais como instrumentos de luta por direito e cidadania, tão caros aos povos originários.
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