Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A desumanização indígena no humor brasileiro
Representações desumanizantes ainda permanecem no cenário da cultura humorística brasileira. Não bastasse o prejuízo simbólico que isso acarreta aos indígenas, os agentes do racismo recreativo perpetuam o espelho que o homem branco cunhou na historiografia e literatura brasileira. Em vez do indígena sobrevivente a genocídios, o seminu "canibal"; do expropriado de suas terras ancestrais, o primitivo que vive na floresta na "tribo" longe de qualquer civilização; do obrigado por lei a não falar sua língua, o analfabeto que conjuga o verbo sempre no infinitivo, constituindo a reencenação colonial sobre os povos indígenas no país.
A reencenação colonial, no que diz respeito aos sujeitos indígenas, mantém a atemporalidade do racismo, invisibilizando a luta coletiva diante de uma realidade traumática ignorada na cultura nacional. Quando um humorista materializa a imagem do "índio" nu na floresta, analfabeto funcional, que tem remoto acesso à rede Wi-fi, ainda que para criticar a visão dominante sobre os sujeitos indígenas, reforça o status quo do sujeito indígena como pré-moderno, antítese da civilização. Como não ser menosprezado quando toda uma cultura - de novela, de programação televisiva, podcast, nos representa como abjetos?
Grada Kilomba, em Memórias da Plantação (Cobogó, 2019), elenca características reencenadas pelo racismo cotidiano. Contextualizado no mundo negro, a intelectual explica que vocabulários, discursos, imagens, gestos, ações e olhares são correspondentes da diferença criada para tratar o sujeito negro como o outro. As formas pelas quais ele é percebido e condenado são pela infantilização, primitivização, incivilização, animalização, erotização. Todos esses imperativos desumanizantes têm sido utilizados pelos humoristas para representar a identidade indígena no humor brasileiro. E mostram, como denuncia Kilomba, ser uma projeção do que a sociedade branca brasileira ainda considera tabu.
Racismo recreativo é crime
No ano de 2021, o Podcast Submundo foi condenado por discurso de ódio e racismo recreativo contra a população indígena do Acre. Você pode acompanhar a notícia aqui: MPF/AC processa trio de podcast por racismo contra indígenas e pede multa de R$100 mil - Jornal A Gazeta do Acre.
No mesmo ano, Léo Lins foi condenado por replicar uma imagem sem autorização e expressar o discurso da integração (já superado em 1988) para o cacique Ronildo Amandius, da aldeia Paranapuã (São Vicente, SP), que anunciava mais uma vez a identidade indígena não ser fantasia.
Na mesma esteira, Marcelo Adnet admitiu no Twitter não fazer mais o "cosplay" do personagem Obirajara, mas apenas em 2020 depois da ativista Kubeo, Raquel Kubeo, solicitá-lo. Ainda nesta semana, de 2022, Bruno Luz, também humorista, utilizou adereços como cocar e maracá, comprados de artistas indígenas, para representar o indígena como analfabeto e exótico. Após manifestações da cantora Kaê Guajajara e da influencer Lídia Guajajara, pediu desculpas e apagou os vídeos de seu canal no Instagram. Não antes sem culpar os próprios indígenas pela falta de letramento étnico-racial para os consumidores.
Indígenas humoristas
Mesmo avançando no âmbito jurídico, ainda é corriqueiro haver casos de racismo anti-indígena. Nesse sentido, para mostrar realidades vindas dos próprios indígenas, indico dois humoristas que respondem a exotizações diárias vindas nas perguntas: o que comem, o que vestem, como namoram; à participação na vida cotidiana: vocês usam celular, estudam, trabalham?
Como vocês podem perceber pelo conteúdo que produzem, os humoristas respondem de um jeito criativo e descolonizador, sem empregar a língua portuguesa no infinitivo: você falar, você comer é racismo linguístico e desconsidera as políticas de opressão linguística existente desde 1755 com o Diretório Pombalino (art. 6) contra as línguas indígenas. Para saber mais leia aqui: DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS (1755) - Texto integral (nacaomestica.org).
Célia Xakriabá relembra que o inverso não acontece, isto é, não ocorre aos brasileiros serem perguntados como cortam o cabelo, como carregam o celular, como comem, isto porque ainda há no imaginário a compreensão de que nós, indígenas, ocupamos o lado oposto da dicotomia: primitivo x civilizado. Quanto falta para tornarmos o racismo recreativo indígena repugnante? E as fantasias redface de carnaval? Quanto?
Dois indígenas humoristas para seguir:
Tukumã Pataxó pertence ao povo Pataxó. Nascido na aldeia de Coroa Vermelha, extremo sul da Bahia, é falante do português, do inglês e da língua materna, o patxôhã. É comunicador na Mídia Índia, estudante de gastronomia (UFBA) e, também humorista nas mídias sociais.
Kauri Waiãpi pertence ao povo Waiãpi. É cantor e gravou alguns de seus clipes na sua aldeia Karapijuty, em Pedra Branca do Amapari, Amapá. Comunicador na COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), também é humorista.
Para saber mais por que falamos "Povos" e não "Tribos", acesse aqui: A teoria e a literatura indígena na educação: outras formas de nomear - 17/03/2021 - UOL ECOA.
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