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Mara Gama

Fome atinge mais de 10 milhões e consumo de ultraprocessados aumenta

Colheita de algodão no Mato Grosso - José Medeiros/Folhapress
Colheita de algodão no Mato Grosso Imagem: José Medeiros/Folhapress

05/11/2020 04h00

Mais de 10 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar grave, que pode ser caracterizada como fome. O componente de raça é estrutural: 74% das famílias nesta situação têm como provedor uma pessoa parda ou preta.

Enquanto isso, o país desperdiça muito alimento, mas não se sabe quanto, onde e nem em que parte da cadeia que vai do campo ao prato. A dieta dos brasileiros está cada vez mais monótona e carregada de ultraprocessados. A produção de alimentos é regionalizada, limitando a variedade no prato. O consumo de carne sobe e o de feijão e arroz cai quanto mais rica é a família.

Esses são apenas alguns dos destaques do extenso e aprofundado "Estudo sobre a cadeia de alimentos", realizado pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), e apoiado pelo Instituto Ibirapitanga e Instituto Clima e Sociedade (iCS). Ele analisa o sistema alimentar nas estruturas de produção, consumo, distribuição e comercialização de alimentos.

Nosso sistema alimentar precisa ser transformado. O mais importante aspecto hoje é a concentração. Uma classe consome 45% do que se consome no Brasil, e o resto é dividido entre as demais classes. Quando a indústria de alimentos vai fazer planejamento, ela mira só nesse mercado.

Walter Belik, organizador do estudo e professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp

Enquanto nas famílias mais ricas o gasto médio mensal com alimentação representa apenas 5% da renda total, entre as famílias mais pobres mais de um quarto (26%) da renda mensal é direcionada à alimentação. O estudo revela também que quando a renda familiar aumenta, o consumo de arroz e feijão diminui e o da carne sobe.

O estudo aponta que 84,8 milhões de brasileiros têm algum grau de insegurança alimentar e que os recursos de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, são mais significativos (representando 25,7% do total da renda) nas famílias com insegurança alimentar grave. "Ou seja, embora contribua para a renda familiar, os recursos dos programas ainda são insuficientes para garantir alimentação adequada", comenta o relatório.

A insegurança alimentar tem três graus. É considerada leve se há preocupação com acesso a alimentos no futuro e qualidade da alimentação comprometida. Moderada se há acesso a uma quantidade restrita e insuficiente de alimentos e grave se há privação severa no consumo de alimentos. No Sul do país, 2,2% das famílias apresentam insegurança alimentar grave, enquanto no Norte o percentual é de 10,2% — quase 5 vezes maior. A segunda região com maior proporção de famílias em situação de insegurança alimentar é o Nordeste, com 7,1% da população.

Para fazer o "Retrato", foram usadas informações da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-18) do IBGE, dados sobre produção e distribuição de alimentos do Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), do Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária), do MDIC (Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços), e relatórios de associações e sindicatos das cadeias produtivas.

"O Brasil está perdendo a capacidade de aproveitar a diversidade climática que o país tem no prato do brasileiro. Estão sendo substituídos alimentos in natura por processados e ultraprocessados e há um aumento da obesidade. Estamos com um patamar altíssimo, de 27 %, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde", afirma.

"A agricultura é grande consumidora de água doce do planeta e emite gases do efeito estufa. Se o país conseguisse reduzir 50% do desperdício até 2030, poderia reduzir a produção em até 25%", diz Belik.

Vinicius Guidotti de Faria, coordenador de Geoprocessamento do Imaflora, chama a atenção para a relação entre renda e alimentação. "Os mais ricos priorizam alimentos que não são necessariamente saudáveis, como é o caso dos ultraprocessados ou consumo excessivo de carne vermelha", diz. "O brasileiro já come bastante carne. Além de causar impacto negativo na saúde, prejudica o meio ambiente, pois a pecuária no Brasil ainda é muito ineficiente, com 1,2 boi por hectare", diz. O Imaflora trabalha com informações de produção agrícola e pecuária e certificação para melhora de práticas de manejo em direção à produção mais sustentável.

"O que a gente quer é mostrar ao consumidor que a escolha dele é importante. Ele tem o poder de estimular ou não cadeias que são prejudiciais ao meio ambiente", diz.

Ele acredita que o modelo de produção e consumo deveria ser profundamente alterado, para reverter a prática das monoculturas, que impedem o cultivo de alimentos variados em todas as regiões e faz com que as pessoas tenham pouco alimento saudável disponível.

"Temos pouca informação sobre perdas e desperdícios. Existe um dado da FAO (da ONU) de que 30% de tudo que é produzido é perdido, mas não temos uma base de dados para consultar nacionalmente. Se a gente conseguir mexer nessa porcentagem e reduzir 25%, a oferta de alimento aumentaria exponencialmente", diz.

Vinicius cita exemplo de como uma política poderia conter o desperdício. "O Nordeste é a maior região produtora de caju. São 150 mil hectares de cajueiros. Mas só as castanhas são aproveitadas. O fruto tem pouco valor na região e é descartado. Imagine o desperdício. Do lado de gente passando fome. Poderia existir uma política pública de estimular a população local a consumir caju. E também daria para incentivar a produção da fruta desidratada, que poderia ser distribuída para outras regiões do país".

Dez destaques do retrato alimentar brasileiro

  • Concentração e desigualdade. Despesas com alimentação das famílias mais ricas são 165,5% maiores que a renda total das famílias mais pobres. O Brasil voltou ao mapa da fome;
  • Monotonia. Dez produtos concentram mais de 45% do consumo: arroz, feijão, pão francês, carne bovina, frango, banana, leite, refrigerantes, cervejas e açúcar cristal. A monotonia alimentar é o oposto da boa alimentação. Demonstra falta de políticas públicas de fomento da biodiversidade;
  • Quando aumenta a renda, diminui o consumo de arroz e feijão e sobe o da carne. O consumo de carne tem significado cultural relevante mas enorme impacto ambiental. Arroz e feijão perdem espaço no prato do brasileiro;
  • Comer fora como hábito. A comida fora de casa representa metade dos gastos com alimentação das famílias mais ricas. Para elas, é lazer. Para os mais pobres, necessidade;
  • Menos comida de verdade. Em 16 anos, o consumo de alimentos in natura teve queda de 7% e o de ultraprocessados subiu 46%. Esses têm baixa qualidade nutricional e excesso de açúcares e gorduras;
  • Grande produtor, mas também consumidor. Como um dos principais produtores de carnes, açúcar, laranja, soja e café, o Brasil é exportador, mas grande parte da produção do país é consumida internamente;
  • Um boi por habitante. 99% da carne bovina consumida no Brasil é local. Em 2018, o rebanho brasileiro era de 213,5 milhões de cabeças. A área de criação de bois é 2,5 vezes maior que toda a área de lavouras brasileiras. Os impactos envolvem desmatamento para pastagem, aumento da produção intensiva de grãos alimentação, poluição de recursos hídricos e emissão de gases do efeito estufa;
  • Em cada canto, um alimento. A especialização regional gera concentração na produção de alimentos, oferta limitada a regiões específicas e a variedade reduzida;
  • Concentração no varejo: grandes redes de supermercados dominam as vendas de alimentos no país. Diminuiu a importância de pequenos comércios e feiras e o contato com os produtores;
  • Uma boa parte dos alimentos é perdida ou desperdiçada na cadeia alimentar, mas ninguém sabe exatamente quanto. Não há no Brasil estimativa confiável sobre o volume de perdas e desperdícios.