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Mara Gama

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Agrotóxico no algodão envenena moda brasileira e impede metas do clima

Nick Oxford
Imagem: Nick Oxford

Colunista do UOL

09/07/2021 06h00

O maior obstáculo da moda brasileira está no campo. O Brasil é o segundo maior exportador de algodão do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, com exportações recorde no primeiro trimestre deste ano. Ao mesmo tempo, o país é o maior mercado de agrotóxicos do mundo e o algodão é a quarta cultura que mais consome os pesticidas. O uso intensivo de agrotóxicos combinado com o modelo "colonial" de exportação de commodities impede que o país avance no combate às mudanças do clima e no desenvolvimento sustentável.

Esse é o resumo do quadro que Yamê Reis, idealizadora do Rio Ethical Fashion, coordenadora de Design de Moda no Instituto Europeu de Design do Rio e participante da campanha Moda sem Veneno detalha na Semana de Moda de Frankfurt, de 5 a 9 de julho. A socióloga e professora fala sobre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável em um fórum da Conscious Fashion Campaign, em parceria com a ONU.

"É importante levar para o debate internacional as dificuldades que o país tem de alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável dentro de um sistema econômico que não favorece. Nós somos um grande produtor de algodão e temos a única cadeia têxtil do começo até o fim. O Brasil tem um peso muito grande nessa indústria e precisa ser ouvido", diz Yamê.

A seguir, trechos da entrevista concedida a Ecoa.

Ecoa - Quais são os desafios da moda no Brasil?

Yamê Reis - Um dos grandes desafios é esse modelo colonial em que o Sul global exporta commodities com pouco valor e quem se beneficia de fato são os países do Norte, porque devolvem produto beneficiado para a gente com preço muito mais alto. Esse modelo prejudica muito. Dificulta a erradicação da pobreza e da fome, porque se baseia na monocultura e não contempla o pequeno produtor, que é quem garante a segurança alimentar. Outro problema é o fato de a Europa exportar para os países do Sul venenos que são proibidos nos seus territórios. O veneno vem para cá e volta para lá na manga, no alimento, no algodão. É uma situação que tem de ser investigada e está sendo, pelos partidos verdes, pelos ambientalistas. Existe também a necessidade do decrescimento e da desaceleração, como uma questão para toda a indústria global. Sem isso, nem a economia circular vai salvar. Essa discussão está muito na pauta. Já está entendido que a economia circular não tem nem como recuperar tanto material assim se a produção continuar tão acelerada, não tem nem como sequestrar tanto carbono porque a Terra também não aguenta.

O que a indústria da moda no Brasil pode fazer?

Tem de ser debatida a questão dos agrotóxicos. O agronegócio é casado com a indústria química. Fazem parte do mesmo ecossistema. Quanto mais você libera agrotóxico, mais você reforça esse modelo. Na nossa campanha da Moda sem Veneno a gente fala de outro modelo, que visa a segurança alimentar. O que a gente pode fazer como indústria é a desaceleração.

Desacelerar implica produzir e consumir menos. Existe essa discussão na indústria brasileira?

O argumento do capitalismo é: desacelerar é perder emprego. Só que, na verdade, o que está acontecendo hoje é a perda de empregos. Porque você contrata o trabalhador para períodos cada vez menores. Ele tem de produzir mais rápido, você contrata para trabalhar menos horas e com contrato mais curto. Você tem hoje um nível de precarização total dentro da indústria. A indústria que já era informalizada -com uma parte pequena das mulheres recebendo com carteira assinada- é cada vez menos formal e com a pandemia foi menos ainda. Então, precisamos desacelerar e ter um capitalismo mais regrado, não tão acelerado, que não considera nem o trabalhador e nem os recursos naturais. Queremos relações de trabalho mais dignas, mais éti cas, com produtos de melhor qualidade, com preço um pouco maior, que sustente essas relações de trabalho e essa cadeia produtiva porque, de fato, a gente não precisa consumir cinco blusas iguais para descartar quatro. Toda a lógica do sistema está errada.

Como surgiu o Moda sem Veneno?

Surgiu de dentro da mobilização contra o PL 6692/02, o PL do Veneno. Resolvemos criar um setorial da moda porque o algodão é, depois do poliéster, a fibra mais usada no mundo. O Brasil é grande exportador e produz com um selo de algodão certificado como sustentável, mas só que esse é o cultivo que mais usa veneno.

O selo é indevido?

Está errado. O algodão produzido no Brasil não é sustentável. O Brasil é o maior consumidor de agrotóxico global e o algodão é a semente que mais usa agrotóxico, porque é muito sujeita a praga. Usa mais que a soja e está plantado junto com soja, consorciada com a soja. Então, além de pesticida, o algodão está também envolvido em todas essas questões de desmatamento, de invasão de terra, porque são os mesmos proprietários. O selo rastreia a cadeia. Você sabe exatamente de onde vem aquela fibra. Só que a certificação não controla o uso de pesticida. Ela controla se o produtor está pagando conforme a legislação e se tem trabalho escravo. O selo atesta que os produtos seguem as leis bra sileiras. Mas só que em relação aos agrotóxicos a legislação brasileira é totalmente fluida. Então não existe um parâmetro para esse controle. Não é porque é rastreável que é sustentável. Pensando nisso, o Rio Ethical Fashion, o Fashion Revolution e o Modifica criamos a campanha e, em 1 mês, já teve 40 mil assinaturas contra a PL. No governo Bolsonaro, estão sendo aprovados mais de 1 agrotóxico por dia. Estamos comendo veneno em tudo que a gente come.

Há alguma proposta de mudar a configuração do selo?

Não. O que a gente quer é que esse algodão não seja nomeado sustentável, porque ele não é. O algodão sustentável é o algodão da agroecologia e da agroflorestal, porque ele regenera a natureza e garante a segurança alimentar. Nenhuma das duas coisas o outro algodão faz.

Onde há algodão sustentável de verdade no Brasil?

Tem a Justa Trama, que é uma cadeia independente só deste algodão no Nordeste, tem a Natural Cotton Color, que fomenta esse cultivo na Paraíba. Mas é 1% dessa cadeia. É muito pouco.

O problema começa na semente...

Sim, é lá na ponta. Tanto que as campanhas do Fashion Revolution esse ano começaram a usar a pergunta: "Do que é feita a sua roupa?". Para a gente poder falar do algodão e dos problemas das fibras. Antes perguntávamos quem faz sua roupa, para refletir sobre trabalhadores da cadeia e as formas de trabalho.

E no pós consumo? Existe algum sistema eficaz de reciclagem de roupas no país?

Não. A Política Nacional de Resíduos não alcança os têxteis e não existe a obrigatoriedade de reciclagem, então, o país está incinerando. Algumas grandes marcas têm iniciativas de reciclagem, como Renner e C&A, mas os números são baixos. Precisamos de políticas públicas que facilitem a abertura de novos negócios que possam fazer a reciclagem têxtil.

De que forma?

Temos a Frente Parlamentar Ambientalista com quem estamos trabalhando na campanha da Moda sem Veneno. Mas o Congresso atual é muito reacionário e dominado pelo agronegócio, então, as pautas de sustentabilidade, ligadas ao Acordo de Paris, elas dificilmente passam. Precisamos realmente ter um Congresso mais sensível a essas questões para que essas novas leis possam passar. Por isso eu falo sempre: o mais importante é o voto. Claro que é importante onde você coloca seu dinheiro, e onde você está consumindo. Mas é seu voto que define a mudança. Em todos os países em que essas pautas avançaram foi através de políticas públicas e nunca através do consumidor sozinho. É importante que haja políticas públicas favoráveis para incenti var as economias verdes. Você vê agora nos Estados Unidos com o Biden. Ele é que vai redirecionar toda a economia no sentido no Green New Deal. Porque sem o estado não vai, não adianta.

O consumidor pode mudar o sistema? Acredita na força do consumo consciente?

Não. Sou a favor do voto consciente. Consumo consciente é aquele em que você não consome. É renovar, refazer, remanufaturar, consertar. São esses negócios. E comprar o mínimo possível. Para mim, esse é o consumo consciente. Mas a gente está muito longe disso.

A pandemia trouxe aumento de consciência sobre o superconsumo, a acumulação e o desperdício de roupas?

Sim. As pessoas ficaram atentas para as desigualdades imensas que a gente tem o Brasil. Mas, ao mesmo tempo, vimos ações desesperadas como de empresas que buscam recuperar os prejuízos que tiveram no ano passado de uma forma totalmente equivocada.

Como professora, pensa que os estudantes hoje têm mais consciência da necessidade de mudança na moda?

Sinto enorme diferença das turmas de hoje. Há mais conhecimento sobre o estado da indústria e a necessidade de mudar. Em design sustentável tentamos criar coleções a partir de materiais que já existem, que já estão dados, e com outras estratégias, que não incluam extração de matéria prima e novos produtos, que já sejam modelos de negócio dentro da economia circular.

Nesses novos modelos estão inclusos reforma, aluguel, trocas de roupas?

Tudo isso e também na construção de design que seja de upcycling, uso de matérias primas e cores que já existem no mercado e não que você vá mandar fazer. Já parte de um processo totalmente diferente da maneira como eu trabalhava nas empresas, que eu criava a cor que eu queria, mandava fazer. Hoje não deve mais ser assim. Há marcas como a Osklen, por exemplo, que usam só o material que já existe e criam essas matérias.

São exercícios de contenção, certo?

Sim, começa com contenção de recursos e um pensamento de design para o fim da vida útil daquele produto, em como ele vai voltar para o sistema econômico, como vai se desmembrar, para que tenha valor em todo o seu ciclo e não apenas na hora que você o compra.

O país está no caminho para atingir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável?

Não vejo no Brasil preocupação com as emissões de gases do efeito estufa. As empresas ainda não têm. Estamos vendo muito poucas indústrias fazerem contagem de emissões, por exemplo, como o tênis Vert. Há marcas como a Insecta que fazem contagem de outra forma. A Vicunha faz contagem de água. Mas é necessária uma contagem mais ampla, de toda a cadeia. Se há uma meta de zerar as emissões em 2050, precisamos começar a contar.