Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Projeto de lei traz grave risco às abelhas nativas e à biodiversidade
Está em discussão no Congresso um projeto de lei que coloca em grave risco as populações de abelhas brasileiras e com elas a biodiversidade de plantios e da flora e da fauna silvestre do país. O Projeto de Lei 4429/20, que regulamenta criação, manejo, uso, transporte e o comércio de colônias de abelhas nativas sem ferrão, teve uma alteração de texto que libera a comercialização de espécies endêmicas de uma região para outra do país.
O Brasil tem cerca de 300 espécies de abelhas e a maior parte delas é sem ferrão, de acordo com o Catálogo de Abelhas Moure, criado pelo entomologista e padre Jesus Santiago Moure (1912-2010), cujos dados podem ser visualizados no mapa criado pela Associação Brasileira de Estudo das Abelhas.
Atualmente, comercializar abelhas nativas para fora de sua área de ocorrência é considerado tráfico de animais silvestres. Diversas espécies de abelhas sem ferrão podem ser criadas para fins comerciais, científicos ou de educação ambiental, mas o criador deve seguir normas da Resolução Conama 496/2020, que restringe a atividade à região geográfica de ocorrência natural das espécies. As áreas de ocorrência naturais são as indicadas pelo Catálogo Nacional publicado pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade). Alguns estados possuem regulamentações próprias, como Santa Catarina.
As abelhas já estão em risco no país por conta do desmatamento, queimadas, mudanças climáticas e do uso indiscriminado de agrotóxicos.
A liberação do comércio pode incentivar uma caça indiscriminada às abelhas nativas para venda, como um produto qualquer, com consequências sérias para a segurança alimentar. Ficar sem elas compromete a produção de comida.
As abelhas são responsáveis pela manutenção da maioria das lavouras cultivadas no mundo e pela vida de espécies de plantas silvestres. Três em cada quatro culturas que produzem frutas ou sementes no planeta dependem de polinizadores. Eles atuam em 35% das terras agrícolas globais, contribuindo com a produção de 87 das principais culturas alimentares. Garantir sua existência e conservação é garantir a biodiversidade. A grande maioria dos polinizadores são selvagens, incluindo mais de 20 mil espécies de abelhas, segundo dados da Iniciativa Internacional de Polinizadores da FAO, a agência da ONU para comida e alimentação.
Entre os riscos biológicos primários do livre comércio proposto pelo PL atualmente em discussão estão a possibilidade de as abelhas entrarem em um ambiente novo e se tornarem competidoras contra as nativas (bioinvasão), a introdução de parasitas e de todos microrganismos que são enviados juntos nas colônias e a morte das novas abelhas ao serem introduzidas em locais com condições climáticas e ambientais diferentes.
Alguns desses riscos do tráfico de abelhas para locais diferentes foram apontados por uma pesquisa feita pelo biólogo Antônio F. Carvalho, do Instituto Nacional da Mata Atlântica (Inma), sobre biopirataria na internet, que mostra como o comercio ilegal ameaça a conservação desses animais. Ele monitorou por um ano e meio anúncios de vendas online de ninhos de abelhas sem ferrão para analisar o fenômeno e suas consequências em artigo publicado na revista "Insect Conservation and Diversity".
O pesquisador verificou 308 anúncios em 85 cidades brasileiras. Ao menos 33 espécies de abelhas sem ferrão constavam nas ofertas, entre elas duas em risco de extinção, como a uruçu-capixaba (Melipona capixaba) e a uruçu-nordestina (Melipona scutellaris). O estudo prova que a biopirataria corre solta com a falta de fiscalização sobre tráfico de animais silvestres. Os preços de colônias identificados na pesquisa variavam de R$ 400 a R$ 5 mil.
Além desses riscos já apontados, a implantação de abelhas em regiões estranhas traz a possibilidade de hibridização interespecífica, que leva à chamada erosão genética, um empobrecimento biológico desses animais com consequências desconhecidas.
Segundo Gerson Pinheiro, idealizador do projeto SOS Abelhas Sem Ferrão, grupo que faz educação ambiental e orienta resgates de colmeias, o tráfico de abelhas interestadual no Brasil existe há muito tempo, e o texto original do novo PL tinha como objetivo anistiar o trânsito das colmeias já transportadas e em produção de mel.
Foi alterada no texto a amplitude dessa legalização, liberando geral daqui por diante a circulação de abelhas de espécies diferentes pelo país, sem respeito às zonas de ocorrência.
"A academia não recomenda e o bom senso também não. Se a pessoa quer ganhar dinheiro com abelha, tem uma lista de abelhas daquele Estado. Só no Estado de São Paulo existem 60 espécies viáveis", diz Gerson.
O SOS Abelhas Sem Ferrão está em campanha para chamar atenção a essa possibilidade de comercialização sem critérios. "Já tivemos experiência de abelhas invasoras no Brasil que causaram danos ecológicos enormes", finaliza.
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