Coronavírus: memórias de quando a perda bateu na minha porta em 2020
Em algum lugar a tristeza deve ser suportável, deve ter algum lugar dentro da gente que topa enfrentá-la.
2011. Perdemos meu irmão. Não sei nem medir a dor (você já perdeu um irmão?). Meus amigos estavam lá, me esperando. Todos reunidos na sala da Carol para me abraçar e acolher. Não, não, não. Não era possível, meu irmão era a melhor pessoa do mundo e morreu atropelado? Qual a razão? Não fazia nenhum sentido.
2013. Perdemos o Alan, de forma dura e dolorosa. E lá estávamos, na sala da Carol. Sem entender, mas juntos e absolutamente revoltados. Óbvio que não fazia sentido, o Alan era o cara mais legal de todos, não podia ser.
A sala da Carol, que também poderia ser a sala do Bal ou do Lucas, presenciava uma cena comum: nós, reunidos. Juntos nas tantas perdas e outros processos dolorosos de nossa vida em comum. Dormimos no carro esperando amanhecer durante o velório. Andamos de mãos dadas para segurar aquela dor imensa que sentíamos.
Eu sei, o texto está triste, mas os dias e as notícias não ajudam.
2020. As mensagens sobre o estado de saúde do Tio Hélio eram diárias. A esperança também: um clima de preocupação, com uma reivindicada certeza de que logo ele estaria em casa. Eu estava louca para ligar pra ele. Fiquei pensando o que ele acharia das nossas preocupações públicas na internet, já que ele estava tão presente nas redes sociais nos últimos tempos - sempre comentando minhas fotos, sempre dizendo que sentia saudade. Mas, na tarde de 2 de junho de 2020, na última terça, em meio a uma ligação de trabalho, o Bi me escreveu com a notícia. Um frase curta, seguida de um ponto final: "Meu pai, hoje, descansou".
Eu, em choque, liguei imediatamente para a primeira pessoa que me veio na cabeça, o Danilo. A gente nem soube se comunicar. Eu e Danilo, em choque. Na sequência liguei pra Carol, aquela da sala. Todos os pensamentos e reações eram involuntários. Eu apenas liguei, escrevi.
Nós, crianças. O Bar do Tio Hélio, no Colônia, era parada obrigatória. A gente comprava coxinha, tomava tubaína e já conversava pra caramba. Eu olhava pra aquele lugar cheio de gente sorrindo, conversando e brincando e achava aquilo demais. Como assim, quando eu vou poder colar pra cá?
Nós, adultos. O Bar do Tio Hélio continuava sendo parada obrigatória. Na adolescência, a gente cabulava aula e ia pra lá. Nem bebíamos ainda, mas vivíamos o tempo todo ali, no melhor lugar do mundo. Meu irmão olhando de longe a movimentação, os caras jogando truco, os meninos jogando bilhar, uma entra e sai - da banca de jornal do Paraíba, até a calçada do Hélio. Todo dia.
O Colônia é um bairro pequeno, todos se conhecem, crescemos com os mesmos amigos na escola, não precisava sair de lá para estudar fora. O Tio Hélio nos conhecia como ninguém, sabia tudo da gente, sabia o que a gente gostava, fazia as piadas certeiras, era o paizão que mantinha as portas abertas para qualquer escolha, qualquer decisão e qualquer festa.
As paredes cheias de imagens e fotos de décadas contêm toda a história da região e reproduzem a linha do tempo da nossa própria história. O bar do Tio Hélio era a sala de estar da nossa casa, das nossas vidas, que ele conhecia e sabia tão bem de de cor.
O luto nos traz uma tristeza profunda, aquela que atravessa nosso dia, aquela que chega do nada e produz a pior movimentação dentro do corpo. É um pouco de choro, um pouco de silêncio e uma vontade de estar com quem se ama. Não dá, não pode, o mundo não deixa a gente se abraçar agora. O choro entala e volta, pra lá e pra cá.
Eu nunca fui de aceitar a morte. Todas as vezes ela chegou rasgando tudo, tirando as coisas do lugar, derrubando pratos e copos.
A perda do meu irmão veio com a imediata responsabilidade de cuidar, lidar e arrumar tudo - do choro da minha mãe à burocracia da escolha do caixão, da escolha de tudo.
Se despedir requer burocracias internas e externas, mas nos traz o senso de responsabilidade e de reinventar quem somos. E tudo isso pode se dar de forma misturada, com dor, tristeza e revolta. É, eu disse que não lido bem com perdas.
3 de junho de 2020. Às 15h, nos reunimos na sala da casa da Carol, mais uma vez. E não foi fisicamente, foi em pensamento e no coração. Vibramos pela passagem do Tio Hélio, e estávamos, mais uma vez, juntos, mesmo que longe uns dos outros e sem acreditar que perdemos alguém brilhante para uma doença que está matando milhares de pessoas no mundo.
O Hélio é parte de quem somos, é pedaço da família construída nesse bairro chamado Colônia Paulista.
Tio, na minha memória, estou agorinha saindo de casa cheia de fome, passando no Lucas e arrastando ele para o bar. Entramos até o fundo do bar, pegamos uma coca ks, uma coxinha e sentamos no banco pra conversar. Por horas. Você fez um bem danado para o mundo, véio, cê nem imagina, né? Ou imagina.
Tio, as crianças aqui viraram pais, mães, tios, tias e estão aí pelo mundão, mas levam na lembrança a importância da vida no bairro, entre os nossos, um ajudando ao outro. Juntos. São essas lembranças - aquelas ali que estão ainda hoje nas suas paredes, que constituem quem nós somos hoje e quem nós vamos ser ali na frente. Esse bar - com você - era nossa segunda casa. Com Bi, Ronaldo, Rosana e a querida e muito amada Tia Luisa. Família imensa que nos acolhe e recebe todos os dias. Quanta história.
Você oferecia amor e afeto aos amigos. E sabia, que isso era também oferecer horizonte e caminhos. Nos ofereceu ensinamentos, história e proteção. Nos ofereceu algo que não era só você, mas era a sua presença em qualquer movimento. Obrigada por nos oferecer tantos horizontes.
E é assim que você, Tio Hélio, ficará guardado dentro da gente e de todos aqueles que tiveram o privilégio de cruzar a esquina da rua Carlos Rasquinho. Obrigado por tudo, Tio Hélio. Um beijo da Mari, folgada e que chegava varada de fome do trabalho, já soltando a mochila pelo bar e pegando uma coxinha, e que teve a honra de crescer ao seu lado. Termino com uma promessa: assim que tudo isso passar, voltaremos a nos reunir em volta da mesa de bilhar e faremos a despedida em grande estilo, juntos, como você gostava.
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