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Mariana Belmont

Fora garimpo, fora comedores de terra!

A liderança indígena Maurício Tomé Rocha Ye"kwana durante filmagens da campanha do ISA #PovosDaFloresta, em Presidente Figueiredo (AM), - André Villas-Bôas / ISA
A liderança indígena Maurício Tomé Rocha Ye'kwana durante filmagens da campanha do ISA #PovosDaFloresta, em Presidente Figueiredo (AM), Imagem: André Villas-Bôas / ISA

11/09/2020 04h00

"Antigamente, antes de os brancos chegarem à nossa floresta, morria-se pouco. Um ou outro velho ou velha desapareciam, de tempos em tempos, quando seus cabelos já tinham ficado brancos, seus olhos cegos, suas carnes secas e flácidas. Seu peito virava outro, acometido pelo mal da fumaça. Extinguiam-se assim aos poucos, pela simples razão de que já não comiam nem bebiam mais."

Destaquei esse trecho do livro "A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami Livro", de Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, que voltei a ler há mais de uma semana, porque acredito que esteja nele a razão do porquê chegamos até aqui. A culpa é toda nossa, desde o príncipio, caso você ainda não tenha entendido.

No capítulo 15 do mesmo livro, Davi chama os garimpeiros de "Comedores de terra". Achei esse termo excelente para falar da campanha "Fora Garimpo, Fora Covid", que exige a retirada de 20 mil garimpeiros da Terra Indígena Yanomami (TIY).

"Meu povo tem o direito de viver em paz e em boa saúde, porque ele vive em sua própria casa. Na floresta estamos em casa! Os brancos não podem destruir nossa casa, senão, tudo isso não vai terminar bem para o mundo". Este foi o alerta do líder indígena Davi Kopenawa Yanomami no início de março, em Genebra, quando foi à ONU denunciar o garimpo na Terra Indígena Yanomami e as políticas do atual governo federal.

Naquele momento, a Covid-19 ainda era uma doença pouco conhecida, restrita a alguns países. Poucos dias depois, a nova "xawara", palavra em Yanomami para as epidemias levadas pelos brancos, fez o mundo inteiro se isolar por medo. Aquilo que indígenas vivem desde a primeira grande invasão, a do continente americano, agora era sentido por todos nós na pele.

Em "A queda do céu", Kopenawa narra a crença de que o céu entraria em colapso se um dia a floresta desaparecesse. Com a chegada do novo coronavírus, que já levou mais de 120 mil vidas no Brasil, aliada ao avanço do desmatamento, da grilagem e das invasões, o cenário apocalíptico não parece tão distante. Por isso, desde o início da pandemia, o xamã Davi está na terra-floresta, agindo para afastar mais essa xawara.

"Nós, pajés, que fazemos dançar os espíritos xapiri, cuidamos da terra-floresta, por isso a conhecemos. Não nos perguntamos como os brancos: "O que está acontecendo de repente com a Terra?" Sabemos que o que está acontecendo de ruim não é por causa de nossa marca nesse chão. Se fosse, a gente tentaria consertar logo!", disse em 2011.

Para entender o drama dos Yanomami e Ye?kwana, as duas etnias que vivem na Terra Indígena Yanomami, entre Roraima e Amazonas, é preciso antes falar de economia. Há pelo menos dois anos, o preço do ouro no mercado internacional vem disparando e chegou em agosto ao recorde histórico de US$ 2 mil a onça (medida usada para o metal). Com ele, explodiu também a exploração dos garimpos de ouro no território Yanomami, atividade ilegal no Brasil.

Calcula-se que atualmente pelo menos 20 mil garimpeiros entram e saem da TIY, sendo o maior vetor de doenças no território. A mais recente da lista é a Covid-19. Segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA), 40% das populações Yanomami que vivem perto de garimpos podem ser contaminadas pelo novo coronavírus -outro sofrimento acrescentado à longa relação de violações contra os indígenas, como a contaminação pelo mercúrio, as doenças e a violência à qual são submetidos pelos garimpeiros.

Soma-se a isso (sim, ainda tem mais!) o desmonte da política ambiental promovida sistematicamente pelo atual governo federal — que fragiliza as ações de repressão ao garimpo ilegal — e a posição reiterada do próprio presidente da República em favor da atividade, estimulando a invasão das Terras Indígenas.

Os Yanomami no encontro de Lideranças Yanomami e Ye'kuana, onde os indígenas se manifestaram contra o garimpo em suas terras. O primeiro fórum de lideranças da TI Yanomami foi realizado entre 20 e 23 de novembro de 2019 na Comunidade Watoriki, região do Demini - Victor Moriyama / ISA - Victor Moriyama / ISA
Os Yanomami no encontro de Lideranças Yanomami e Ye'kuana, onde os indígenas se manifestaram contra o garimpo em suas terras. O primeiro fórum de lideranças da TI Yanomami foi realizado entre 20 e 23 de novembro de 2019 na Comunidade Watoriki, região do Demini, Terra Indígena Yanomami
Imagem: Victor Moriyama / ISA

O alto risco de disseminação da Covid-19 na Terra Indígena Yanomami levou o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye?kwana a lançar, em junho, um grito global pela retirada dos invasores. Com o apoio de diversas organizações internacionais, a campanha "Fora Garimpo, Fora Covid!" busca pressionar o Ministério da Justiça e o Conselho Nacional da Amazônia a articular operação inédita entre Exército, Ministério da Defesa, Polícia Federal, IBAMA, Funai e Icmbio para promover a total desintrusão e garantir assim que a pandemia da Covid-19 não avance sobre as aldeias.

A ação também conta com uma petição online, que já soma quase 400 mil assinaturas!

A campanha #ForaGarimpoForaCovid é uma iniciativa do Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana e das seguintes organizações: Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye'kwana (SEDUUME), Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK), Texoli Associação Ninam do Estado de Roraima (TANER), Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA).

A campanha conta com o apoio de: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Instituto Socioambiental (ISA), Survival International, Greenpeace Brasil, Conectas Direitos Humanos, Anistia Internacional, Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Instituto Igarapé, Rainforest Foundation US, Rainforest Foundation Norway.

E destaco aqui a importância de citarmos as organizações indígenas, redes de organizações e movimentos que formam essa campanha, porque são essas articulações que historicamente se mobilizam para pressionar o Estado para garantir direitos de existência.

Essa semana a Rede Pró-Yanomami e Ye?kwana denunciou a subnotificação de mortos e contaminados pela Covid-19. Comunicando que há casos confirmados de contaminação em área em 13 das 37 regiões da Terra Indígena Yanomami. Nessas aldeias, o isolamento social entre os moradores é impraticável, consequentemente, é possível que cerca de 10.800 Yanomami e Ye?kwana já estejam expostos ao novo coronavírus, em um universo de cerca de 27 mil pessoas - mais de um terço da população total. A rede YY é formada por pesquisadores que lutam pela garantia dos direitos territoriais, culturais e políticos desses povos. A organização, que denuncia uma política deliberada de subnotificação dos óbitos pela doença, afirma que já são 17 indígenas mortos pela Covid-19.

Em paralelo, os quilombolas foram ao STF exigir ações do governo federal contra a Covid-19, exigindo seu direito de existir e não sumir.

É tanta coisa que não cabe nesse texto, não cabe. O projeto de genocídio contra indígenas, quilombolas, periféricos e toda a população está em curso. É devastador.

Aqui neste texto, usei as palavras das redes, das organizações, dos Yanomamis, porque não tenho como opinar para além do óbvio. E deixo uma pergunta que nos deveria deixar inquietos: Para onde estamos indo?

Uma esperança de futuro que acabará frustrada e devastada.

E enquanto isso, estamos queimando a Amazônia, estamos queimando o Pantanal e estamos queimando o Cerrado!