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Mariana Belmont

Um filme de Leandro Roque de Oliveira, o Emicida

Jef Delgado/Divulgação
Imagem: Jef Delgado/Divulgação

Mariana Belmont

10/12/2020 04h00

Assistir ao documentário "AmarElo - É tudo para ontem" sozinha talvez não tenha sido uma boa ideia, pior ainda foi a ideia de assistir três vezes no mesmo dia. Tô ainda sentada no sofá da sala pensando em como explicar que eu tive a oportunidade de fazer parte do mesmo tempo que a obra do Emicida. Não sei explicar, é gigante.

Eu não sei direito descrever o que senti assistindo: anotei coisas, pensando no que escreveria aqui. Não sei ainda, tô fazendo de olho fechado para ver o que sai no final. Mas meu corpo inteiro tremia, inteiro. Acho que senti isso poucas vezes, uma alegria que toma o corpo e dispara o coração. Um choro que chega dói a cabeça. Levantei uma hora para secar o rosto e lavar as mãos que suavam.

Eu nem gosto de ser fã, mas acontece que sou e falo sobre isso com frequência, meus amigos sabem. Eu falo isso para o Fióti, mano: "acho vocês foda e potentes demais". E repito mesmo. Inclusive, pode me mandar parar. Mas não vou.

Assisti e fiquei pensando onde eu estava no dia 27 de novembro de 2019. Estava há poucos metros do Theatro Municipal, no escritório central da Uneafro Brasil, lá na Galeria Metrópole. Não consegui ingresso, e lamentei, mas é isso. Não deu, perdi. Caramba, eu ia em todos os shows do Emicida, em São Paulo, mano. Perdi esse, justo esse. Tudo bem, lamentei e segui na galeria, trabalhando e desejando que fosse lindo. Depois vi fotos do Miltão, Regina e Adão, do Movimento Negro Unificado, me emocionei.

O Emicida faz isso, ele emociona. Emociona, conta e escreve a história.

Uma vez, quando voltava do trampo, no fone ouvia aquele disco do Emicida com o Criolo, sabe? Aquele show genial, bonito, perto da gente. Sentada na janela, olhava para fora e a paisagem era a Represa Guarapiranga. A vista era linda, a música dentro de mim. Que coisa surreal, me lembrei agora. Eu ouvia esse disco muitas vezes no trajeto trabalho x casa, eu sou de Parelheiros e trabalhava no Paraíso, né? Rolê de duas horas, então eu sabia aquele disco de cor.

O show faz isso, ele entra dentro da gente, a música percorre ao vivo nosso corpo, ativando todos os sentidos. O toque, a letra, é maluco.

O dia 8 de dezembro de 2020, dia de Oxum, será marcado como data histórica, foi em uma terça de um ano complexo, difícil e cheio de tristeza, desilusão e perdas que chegamos até esse dia do ano. Mas foi nesse dia que o Emicida colocou no mundo, e na Netflix, o documentário "AmarElo - É tudo para ontem", resultado de dois shows realizados em 2019, no Theatro Municipal da cidade de São Paulo.

No mesmo dia completamos também 1000 dias que Marielle e Anderson foram brutalmente assassinados. Mil dias e contando sem saber quem foi o mandante dessa execução política. E seguimos nos perguntando: Quem mandou matar Marielle?

Um elenco de peso, para uma história de peso: Marielle Franco, Lélia Gonzalez, Geraldo Filmes, Mateus Aleluia, Abdias Nascimento, Milton Barbosa, José Adão, Regina Lucia Santos, Wilson das Neves, Leci Brandão, Pixinguinha, Ruth de Souza e muitas e muitos mais.

Assistam esse documentário que traz Exu abrindo e fechando essa parte gigante da história. Exu, que é mensageiro, porta-voz e intérprete, como ensina a "Enciclopédia brasileira da diáspora africana", de Nei Lopes, compositor, cantor, escritor e estudioso das culturas africanas. "É o orixá que abre caminho para o acontecimento. Na mitologia, quando joga a pedra por trás do ombro e mata o pássaro no dia anterior, Exu reinventa o passado. Ensina que as coisas podem ser reinauguradas a qualquer momento".

Eu já escrevi muito sobre o Emicida aqui: sobre a música, sobre a mesa que participei com ele e Ailton Krenak e sobre as tantas vezes que ele nos chamou para construir a história, olhar para trás e desenhar um futuro melhor. Com música, com conversas e com pessoas, juntos.

O território é um caminho inteiro, é o chão que a gente nasce, é a vida que a gente constrói e são as lutas que a gente determina. Fronteiras e territórios são também linhas traçadas nos nossos corpos e cabeças, e nos fazem pertencer ao mundo possível, de cuidado da terra, de plantio, de escuta e percepção do nosso entorno. E isso também passa pela nossa história, pela história desse país.

O samba também está presente. O samba, na real, é protagonista. Ele, o samba, manifestação cultural do povo. Aquele que criou as melhores políticas públicas sem a mão do Estado: a expressão máxima do nóis por nóis . O samba é sempre um convite, assim como esse registro histórico do Laboratório Fantasma. Precisamos de movimentos mais coletivos, transformações mais coletivas para avançarmos e mudar o que se precisa para viver.

Que honra imensa viver no mesmo tempo que você, Emicida. Que honra imensa viver no mesmo tempo que você, Evandro Fióti. Vocês são grandes demais. Obrigada!

Vocês transformaram uma geração inteira, não parem. Eu seguirei aqui admirando e ouvindo.

Que nunca foi sorte, sempre foi Exu.