A polêmica da energia limpa: eólicas podem privatizar praias? E o mar?
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Enquanto Luana Piovani e Neymar discutiam nas redes sociais, e o Brasil inteiro acompanhava no Congresso um projeto de lei que poderia liberar a privatização das praias, movimentos de agricultores e povos originários pediam um minuto de atenção. Segundo eles, pode parecer inusitado, mas suas praias foram privatizadas faz tempo. Algumas teriam até catracas para passar. Tudo em nome da energia renovável e limpa.
Por falta de uma legislação adequada, parques eólicos teriam instalado, no passado, suas torres gigantes (e barulhentas) em santuários do nosso litoral, em que viviam comunidades pesqueiras, agricultores locais, quilombolas e povos indígenas. Segundo denúncias, estas usinas teriam ocupado o território sem cuidados socioambientais, ora expulsando a população que ali vivia, ora tornando a vida local impraticável e insalubre devido ao forte ruído incessante das torres, muitas vezes fincadas próximas demais às casas. Moradores seriam impedidos de pescar e circular nas praias, que sempre foram de domínio público e a fonte de subsistência local. Há denúncias ainda de desmatamento, destruição da vegetação nativa e poluição de lençois freáticos.
Mais do que praias, a geração de energia eólica no Brasil deve ocupar ainda mais espaço nos próximos anos. A ideia agora é partir para o mar: há hoje 97 projetos de parques off shore submetidos ao sistema de licenciamento do Ibama. Se aprovados, teremos 15.500 turbinas eólicas nos mares brasileiros. O foco é a tão sonhada (e necessária) produção de hidrogênio verde. Porém, especialistas alertam que ainda não há estudos conclusivos sobre estes impactos em águas brasileiras, nem um planejamento espacial marinho, como determina a Unesco. Mesmo assim, já estamos em processo de industrialização do mar.
O custo da energia limpa
"O conceito de energia limpa está relacionado diretamente à emissão de CO2. Porém, ela também tem seu impacto. O território não é um recurso natural que pode ser explorado sem controle. Há comunidades encurraladas por empreendimentos que foram construídos de forma avassaladora", afirma Adryane Gorayeb, professora do departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará, e que lidera diversas ramificações de pesquisa no Observatório de Energia Eólica da mesma universidade.
O conceito de energia gerada pelo vento passou a ser mais disseminado em 2001, após um apagão energético no país. A partir de 2008, começaram as instalações dos primeiros parques eólicos no Brasil. Por falta de regulação na época, muitos destes parques implantados entre 2008 a 2014 foram fincados no litoral numa faixa de até 20 quilômetros da praia - alguns ainda mais perto, ou seja, na própria praia. Até 2014 turbinas eram instaladas a menos de 100 metros das casas, levando ruídos ensurdecedores 24 horas por dia aos moradores. A partir de então os relatos de comunidades locais começaram a aparecer.
Foi o que aconteceu, por exemplo, na praia do Cumbe, litoral oeste do Ceará, a cerca de 180 km de Fortaleza. Perto da famosa Canoa Quebrada, o Cumbe é uma área de manguezais e grandes dunas. Ali moram cerca de 1.200 pessoas de uma comunidade quilombola de pescadores artesanais desde 1761. "Foram instalados 67 aerogeradores. Desmataram, poluíram, desconfiguraram as dunas, colocaram estruturas dentro do lençol freático. Construíram uma portaria na nossa praia e passaram a impedir nosso acesso. Tomar banho nas lagoas naturais se tornou perigoso, pois os fios passavam por dentro destas lagoas. Além do lazer, tiraram a sobrevivência da comunidade: a pesca no mar deixou de acontecer. A energia é limpa, mas a forma como ela foi implementada é predatória como qualquer outro empreendimento econômico.", conta João do Cumbe, liderança do quilombo.
A mobilização da comunidade conseguiu que o acesso às praias fosse liberado em 2013. "Parece irônico, mas ganhamos o direito de entrar na nossa própria praia", ironiza.
Desde 2016, o parque eólico no Cumbe é administrado pela CPFL Renováveis. Procurada por Ecoa, a empresa informa que "estudos do local foram submetidos à análise do órgão ambiental competente, o qual emitiu a licença de implantação e operação com as condicionantes de monitoramento de impacto, as quais a empresa segue rigorosamente". A empresa destaca ainda que vem promovendo diversas ações e projetos sociais no local nos últimos anos, tais como a construção de um museu arqueológico e projetos de capacitação profissional.
A ABEEólica (Associação Brasileira de Energia Eólica) afirmou à Ecoa que "o uso de terras públicas para fins lucrativos particulares é vedado e o setor das energias renováveis respeita toda a legislação vigente". Porém, no caso de terras privadas próximas ao mar, pode ser preciso cercar parte da área por uma questão de segurança. "Mas vale destacar que das fontes de energias, a eólica é a que precisa de menor território. Os aerogeradores ocupam um pequeno espaço da área total do terreno e todo o resto segue livre para outras atividades".
A associação lidera um Grupo de Trabalho há dois anos para discutir, compartilhar boas práticas e facilitar ações para solucionar as questões apontadas por comunidades vizinhas aos parques. Ela ressalta que as empresas geram empregos, oferecem capacitações e benefícios às comunidades.
Saúde mental abalada
Wanessa da Silva Gomes, professora da UPE (Universidade de Pernambuco) e colaboradora do programa de pós-graduação da Fiocruz Pernambuco, lidera o projeto de pesquisa em saúde intitulado "Processos de vulnerabilização e os conflitos socioambientais decorrentes da implantação e operação de parques eólicos em comunidades camponesas no agreste meridional de Pernambuco". A equipe multidisciplinar pesquisa, há um ano, a comunidade de Sobradinho, a cerca de 240 km de Recife, que concentra dois parques eólicos.
O que mais chama a atenção dos pesquisadores é a saúde mental dos moradores: 66% precisam usar medicamentos para dormir (entre crianças a idosos); 54% dos relatos dizem ter perda auditiva; 31% incômodo visual (por conta das sombras das torres e efeito estroboscópico) e 41% relataram alergias e dermatites pela poeira espalhada pelas torres na água. "O barulho em cima das casas é o tempo inteiro, insuportável. Parece um avião que vai decolar e não decola nunca", disse Wanessa à Ecoa. "Podemos afirmar, sem medo de errar, que a saúde mental é muito impactada nestas comunidades. O ruído causa irritabilidade, ansiedade, falta de sono. Trata-se de um sítio rural - não causa estranhamento como tanta gente usa medicamento para dormir em um lugar que era calmo e tranquilo?
A ABEEólica afirma que não há consenso na comunidade acadêmica no Brasil sobre impactos das usinas eólicas na saúde da população e aguarda mais pesquisas com base científica para chegar a uma conclusão sobre o tema. Reafirma, porém, o compromisso com o assunto: "Não se pode falar em transição energética justa sem considerar a inclusão social e reconstrução de processos para uma energia verdadeiramente verde e sustentável".
A professora Adryane Gorayeb, do Observatório de Energia Eólica do Ceará, resume: "Queremos, sim, que a energia eólica seja cada vez mais desenvolvida no país. Mas precisamos olhar para esta forma de exploração. Ninguém quer descarbonizar o planeta matando os mais pobres".
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