Brasil compra lixo de outros países e deixa de reciclar o que produz
Era uma vez a incrível história de um país que produzia milhares de toneladas de resíduos sólidos todos os dias. Mas que reciclava menos de 4% destes resíduos. Não contente com estas montanhas de lixo e sem conseguir dar conta delas, o tal país resolve comprar ainda mais lixo de outros países para aí, sim, reciclá-lo e colocar esta façanha em seus relatórios de sustentabilidade.
Seja bem-vindo ao Brasil de 2024. A situação parece surreal, mas a importação de resíduos vem crescendo ano a ano. Somente entre 2019 e 2022, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), as compras de papel e vidro de outros países subiram respectivamente 109,4% e 73,3%. No caso do plástico, o período registrou aumento de 7,2%. Um dos fatores que fizeram com que esses números tenham crescido no período acima é que o governo anterior zerou a alíquota de importação desse tipo de resíduo. Porém, o atual governo subiu a taxa de importação para 18% - e, mesmo assim, contrariando expectativas, a prática segue crescendo.
A explicação para esta distorção está no bolso: continua sendo mais barato comprar resíduos de fora em vez de reciclar os nossos próprios. Com a importação, o valor do material recolhido pelos catadores tende a baixar cada vez mais, levando a uma precarização ainda maior do trabalho destes profissionais.
"Não faz sentido não aproveitarmos o que geramos. Se você facilita a importação, não desenvolve a cadeia aqui, retirando recursos que iriam para ajudar catadores a terem uma vida melhor. Não adianta dizer apenas que o produto é reciclado: é preciso olhar para toda a cadeia de fornecimento. E os direitos humanos de quem recolhe estes resíduos devem ser levados em consideração", aponta Isabela de Marchi, Gerente de Sustentabilidade da SIG na América do Sul. Segundo ela, é preciso aumentar ainda mais os incentivos fiscais para que as empresas utilizem o material existente no país.
Patrícia Iglecias, professora e superintendente de gestão ambiental da USP, observa que a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) prevê, no pós-consumo, a priorização da inserção das cooperativas de catadores e sua profissionalização. "Os resíduos devem ser geradores de renda e cidadania. Ao não usar o trabalho dos catadores, você não atende à ecoeficiência que está na lei. Porque existem impactos que não estão no preço dos importados: há emissões de carbono por conta do transporte no navio, riscos de acidentes, sem contar que não há dados sobre a forma como este resíduo foi produzido no país de origem. Ou seja: é uma concorrência desleal com nossos resíduos".
Um levantamento feito pela Universidade de São Paulo aponta que, em 2021, o Brasil importava 8.600 toneladas de resíduos por ano. Isso equivale a 4% da geração de resíduos em um único dia no país. Dados coletados por associações de resíduos sólidos brasileiras mostram que, de 2021 até os dias de hoje, foram importadas 249 mil toneladas de papel, 12 milhões de plásticos e 21 mil toneladas de vidro. Estados Unidos encabeçam a lista dos nossos principais fornecedores.
Ao comprar um produto que leva o símbolo de "reciclado" na embalagem, o consumidor não tem a informação sobre a forma com que esta reciclagem ocorreu. O Brasil gera hoje mais de 80 milhões de toneladas de resíduos por ano e recicla apenas 4% deste total. Somos o quarto país que mais gera poluição plástica no mundo. Ou seja: é muito provável que este produto seja resultado de uma reciclagem vinda da importação. Ao desembarcarem no Brasil, estes materiais não chegam com dados de rastreamento e, pior, muitas vezes aportam sujos, trazendo elementos tóxicos, como dejetos de vários tipos. Isso abre as comportas para a chegada ilegal de lixo tóxico no Brasil - crime que já chama a atenção das autoridades.
"O processo da importação propicia o que chamamos de dano-evento, ou seja, que lesa um direito subjetivo ou uma norma protetora de interesses. Neste caso, o prejuízo está mascarado e será visto um tempo depois. Se queremos avançar em matéria de sustentabilidade, é preciso considerar a proibição total da importação de resíduos como medida não só ambiental, mas também econômica e social", afirma Patrícia Iglecias.
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