Topo

Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Você sabe o que é transfake?

Ivan (Carol Duarte) em "A Força do Querer", novela exibida em 2017 - Estevam Avellar/TV Globo/Divulgação
Ivan (Carol Duarte) em "A Força do Querer", novela exibida em 2017 Imagem: Estevam Avellar/TV Globo/Divulgação

31/03/2021 06h00

Desde 2016/2017, com o lançamento do primeiro Manifesto Representatividade Trans Já pela MONART (Movimenta Nacional de Artistas Trans), escrito principalmente por Renata Carvalho, Leona Jhovs e Léo Moreira Sá, se iniciou no Brasil a discussão sobre o Transfake. Para quem não sabe, transfake é o nome dado ao ato de pessoas cisgênero interpretarem personagens trans, seja no teatro, na TV ou no cinema. O Manifesto nomeia um debate que já existia, porém sem muita força expressiva. O transfake - termo criado por Renata Carvalho e bastante referenciado no Blackface (pessoas brancas que se "caracterizam" de pretas para representar uma personagem) - passa então a ser popularizado, pouco a pouco, nesses últimos quatro anos com o intuito de paralisar essa prática e lutar para que pessoas trans tivessem a possibilidade de representar suas próprias vivências e, portanto, dignificá-las.

O blackface e o transfake partem de contextos e opressões sociais distintas, porém semelhantes em muitos pontos. Ambos serviram para que não houvesse pessoas pretas ou trans em cena, e não só isso, foram ferramentas que contribuíram para a ridicularização, esteriotipação e caricaturização dessas vivências. Vocês podem assistir ao documentário "Disclosure" ("Revelação") na Netflix, que de uma forma muito didática conta, pela ótica de profissionais trans do audiovisual norte-americano, como o cinema construiu um imaginário social sobre as pessoas trans desde o cinema mudo, também pela prática do transfake - mas não só - corroborando para uma visão marginalizada e marginalizante dessas corpas, colocando-as como violentas, erotizadas, perigosas, dignas de riso e de escárnio por parte da sociedade em geral.

Agora, em 2021, por mais que a discussão tenha avançado e pessoas trans tenham começado a aparecer em algumas séries, filmes e novelas, infelizmente ainda são poucas essas pessoas e a prática do transfake ainda não cessou. Podemos recordar a reprise da novela "A Força do Querer" - que carinhosamente prefiro chamar de "A Força do Transfake" - em que podemos ver uma personagem travesti e um protagonista homem trans, porém ambos eram realizados por pessoas cisgênero. A novela foi exibida pela primeira vez em 2017, já com as discussões em voga, e mais uma vez a população trans se vê retratada de forma bastante equivocada e estereotipada, não só pelas interpretações das personagens, mas pela narrativa da dramaturgia em si.

Por um lado, vemos Silvero Pereira interpretando uma personagem travesti que se veste de homem durante o dia para conseguir ter um emprego formal, com pitadas de textos didáticos quando se encontra com pessoas do seu convívio íntimo - porém didáticos às avessas, já que foi possível assistir, e com direito a reprise, uma avalanche de conceitos e explicações equivocadíssimas sobre ser trans, incluindo o fato da personagem por vezes se dizer gay, ou veado, dando a entender que mulheres trans na verdade são homens gays vestidos de mulher, o que é uma grande mentira. Por outro lado, acompanhamos a trajetória de Ivan, um homem trans que passa boa parte da novela ainda pré-transição de gênero e que, resumidamente, corroborou e muito com o discurso de que pessoas trans nasceram no corpo errado, que nascem uma coisa e se transformam em outra, e que odiar o próprio é uma premissa básica para quem é trans. Falácias da cisgeneridade!

Podemos encontrar na história do cinema diversos filmes, peças de teatro, novelas e séries com narrativas como essas e com a prática do transfake presente: Rodrigo Santoro em "Carandiru", Luis Lobianco em "Gisberta", Jeffrey Tambor em "Transparent", Eddie Redmayne em "A Garota Dinamarquesa", Jared Leto em "Clube de Compras Dallas". Trabalhos esses que impulsionaram a carreira dos atores que os fizeram e em sua grande maioria foram sucesso de crítica e de prêmios. Curioso que representar uma personagem trans, quando feito por uma pessoa cis, é sempre visto como um grande desafio, um marco na carreira artística.

Fico me questionando o que há de tão desafiador assim de se aproximar dessa realidade. E por que pessoas trans que representam personagens trans geralmente não recebem tamanha atenção da crítica? Por que, por exemplo, na série POSE - uma das séries com maior número de pessoas trans no elenco protagonista da história - não houve nenhuma indicação das atrizes da série para prêmios significativos, sendo que a série é um sucesso mundial?

Podem querer rebater com o discurso de que talvez elas não sejam boas o suficiente, que seus trabalhos são frágeis, mas não há como dizer isso com o tamanho do sucesso que o trabalho alcançou. Da mesma forma que temos inúmeras razões para descreditar o trabalho da grande maioria das pessoas cisgênero nas suas representações de pessoas trans no audiovisual, mas o talento é ainda mais valorizado quando praticam o transfake. A questão aqui não é talento, não é capacitação, mas o apagamento massivo das pessoas trans no mercado de trabalho artístico, onde são destituídas de até mesmo representarem a "si mesmas".

Também já sei que alguns podem vir com o argumento de que o ator ou a atriz tem o direito de representar tudo, com liberdade, pois essa é a sua profissão, mas quem tem de fato essa liberdade? Até hoje só podemos observar essa liberdade operando quando são pessoas cisgênero e brancas trabalhando. Podemos falar de liberdade quando essa mesma não é para todes? Seria então liberdade ou privilégio, nesse caso?

Não vou entrar em pormenores sobre como esses trabalhos possam ter servido como referência ou aprendizado para algumas pessoas, porque isso não é excludente... porém, assim como falei sobre a novela reprisada, a maioria dessas narrativas são construídas com informações mentirosas, detalhes violentos e carregadas de conceitos que constroem um imaginário totalmente equivocado sobre as pessoas transvestigêneres.

Em contraponto com essa realidade, podemos assistir hoje, felizmente, no cenário nacional e mundial a algumas pessoas trans alcançando espaços de visibilidade e respeito no cenário do audiovisual e das artes da cena: Laverne Cox, Renata Carvalho, Luh Maza, Gabriela Loran, Wallie Ruy, Aretha Sadick, Daniel Veiga, Leo Moreira Sá, Bernardo de Assis, e inclusive eu mesma, deixando de lado a modéstia. A nossa presença, não só em frente às câmeras, mas também nos espaços de decisão como a direção, o roteiro, entre outros, tem crescido, fruto da luta diária pelo nosso espaço de direito no mercado de trabalho, em prol da fidelidade para com a nossa realidade, para a construção de imaginários mais condizentes com quem somos e que abarquem as complexidades e a pluralidade de vivências que existe, dado que ser trans não é quem somos por completo, mas mais um detalhe da nossa existência, assim como ser cis é mais um detalhe das pessoas cisgênero.

A luta continua para que mais e mais de nós possam exercer sua profissão com dignidade e que nossas vivências sejam retratadas com respeito, seja na cena, seja no cotidiano. Para que em um futuro próximo possamos todes desfrutar da tal liberdade artística, realizando personagens dos mais variados tipos, mas para isso é necessário transformar não só a realidade do audiovisual, mas da nossa sociedade atual.

Deixo para vocês um convite para acessar e ler o Manifesto Representatividade Trans Já, para compreenderem como esse problema é estrutural e histórico, e só com a colaboração de cada vez mais pessoas poderemos mudar essa realidade.

Assistam projetos de pessoas trans. Assistam projetos escritos e dirigidos por pessoas trans. #DigaNãoAoTransfake #DigaSimAoTalentoTrans #RepresentatividadeTransJá

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL