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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não-monogamia é suporte, não descompromisso

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Imagem: iStock

20/04/2022 06h00

Ainda vemos no senso comum uma ideia bastante equivocada sobre a não-monogamia, não apenas pelos estigmas e preconceitos advindos da ignorância, mas também pelas interpretações superficiais dessa política relacional, pintando-a como descompromisso, falta de vínculo ou até mesmo de responsabilidade afetiva. De fato, pouco sabemos ainda sobre, dado que a nossa sociedade atual se estrutura a partir da lógica monogâmica, do casamento, da herança... Aprendemos desde o nascimento a sermos monogâmicas e o desafio se encontra exatamente em desvendar e desenvolver outras possibilidades de construção na lógica relacional.

A não-monogamia — tal como a afirmação monogâmica — trata de políticas relacionais, posicionamentos que refletem não apenas como você quer construir um relacionamento amoroso com alguém(ns), mas como enxergamos ou buscamos desenvolver as afetividades em geral. A não hierarquização das relações, por exemplo, que destitui a pessoa com quem se tem uma relação amorosa/sexual de um lugar de maior importância dentre as outras — como amizades, família e até mesmo de sua própria individualidade — não apenas reflete na melhor distribuição dos vínculos e de suas importâncias singulares e distintas em nossa vida, como nos propõe a reflexão sobre saúde emocional. Ela nos faz rever o quanto desse status de prioridade nos impõe, ainda que implicitamente, uma devoção e consentimento em situações que nem sempre nos fazem bem.

Mas de que forma a não-monogamia pode estruturar as relações com responsabilidade afetiva? Como ela pode prover mais saúde emocional se ela causa, por vezes, tamanho desconforto?

Em primeiro lugar, precisamos rever a lógica do ciúme, essa palavra tão ampla e mal discutida que na maioria das vezes reflete muito mais sobre o ego de quem a pronuncia do que sobre uma real falta de lealdade de outrem. É muito provável que, na busca por construir relações não-mono o ciúme aparecerá, seja em forma de insegurança, de controle/posse do outro, ou até mesmo na comparação/competição — essa que resvala nos sentimentos anteriores. É necessário desvendar mais a fundo o ciúme para que ele não sirva de instrumento para a proibição ou boicote, seja das liberdades de quem você se relaciona, seja sobre as tuas próprias, esta última quando nos limitamos à sensação de incômodo para legitimar uma pseudo incapacidade de olhar para as situações por outro ponto de vista, mais ampliado, buscando avaliar inclusive nossas limitações e construções normativas, as mesmas das quais tentamos tanto nos desvencilhar.

Em segundo, se na monogamia construímos uma série de regras e acordos para privilegiar a relação do casal e evitar a distribuição do afeto (pelo menos deste direcionado à pessoa "escolhida" para a posição de prioridade), vemos também o quanto a ideia de traição está presente nestes contextos. Se queremos construir uma relação não-mono - e aqui vou me atentar principalmente à ideia de anarquia relacional, não às ditas "relações abertas" - o que precede e procede do afeto é a responsabilidade, a construção da conexão pela honestidade e pelo compartilhamento dos processos. Percebem a diferença? Enquanto a monogamia pressupõe acordos para manter uma relação por mais tempo, a não-monogamia pressupõe real interesse, dedicação e cuidado.

Atualmente vivo uma relação não-monogâmica e não tenho como dizer que ela acontece sempre e invariavelmente na fluidez e de forma confortável. Pelo contrário, existem inúmeros desconfortos e incômodos neste processo, e é exatamente para eles que busco olhar. Os momentos bons, as intimidades, as trocas e situações cotidianas são de extremo valor, porém olhar para os desconfortos, para as coisas que me atravessam de forma desagradável é exatamente o que me movimenta a me conhecer mais a fundo, reconhecer meus padrões ainda de apego, controle ou minhas inseguranças e, dada a confiança construída neste processo relacional, dialogar sobre tais pontos.

A linha parece tênue entre se sentir mal por reprodução de padrões normativos e o desconforto em relação às situações que você ainda não está fortalecida para lidar, ou até mesmo quando existe de fato algum desrespeito acontecendo, porém não é. É necessário afinco, um desejo de verticalização na autopercepção para conseguir identificar nossos processos pessoais e ter um maior cuidado e atenção com os outros para, além de identificar as dores e prazeres que nossas atitudes possam provocar, conseguirmos estabelecer diálogos mais nítidos, fugindo inclusive dos vocabulários viciados do ciúme generalizado, como eu disse anteriormente.

É um processo constante de trabalho, de cultivo de si e das relações. Inclusive, dizer que "atualmente vivo uma relação não-mono", apesar de compreensível, já é por si só contraditório. Eu sou não-monogâmica, aplico isto em minha vida enquanto política relacional, portanto não estabeleço uma ou outra relação não-mono, mas instituo isso como a maneira com que me relaciono com as pessoas em geral, com o mundo à minha volta.

Precisamos desmistificar e conversar mais sobre este assunto que tem se tornado cada vez mais popular, de forma à não instituir uma forma ou outra de se relacionar como melhor ou pior, certa ou errada, violenta ou não. Mas reconhecer os processos e valores que constituem cada uma delas para podermos construir nossa autonomia e decidir qual é o melhor caminho para nós, o que nos engrandece e nos torna mais satisfeitos na nossa trajetória. Os processos e políticas relacionais são culturais, históricos e têm total conexão com o mundo à nossa volta. É ignorância acharmos que apenas são como sempre foram, portanto, discutir sobre outras possibilidades que não a monogamia é também construir nossa própria decisão sobre como queremos nos afetar e ser afetados. É sobre autonomia, sobre autoconhecimento, e assim, cada vez menos sobre dependência emocional. É mais sobre coexistência, cuidado e laços de confiança e suporte.