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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O ofício de artista me amadurece, me dignifica

Marina Mathey em seu show "TRAVA" - Foto de Everton Ferreira/acervo pessoal da artista
Marina Mathey em seu show 'TRAVA' Imagem: Foto de Everton Ferreira/acervo pessoal da artista

11/05/2022 06h00

Sempre percebi em alguma medida o quanto o trabalho de artista movimentava minha humanidade. Talvez tenha sido, inclusive, o que fez com que eu me apaixonasse e decidisse lá com meus doze anos de idade que esse seria meu caminho profissional. Isso que começou no teatro e hoje, na minha vida, se expande para diversas outras linguagens, é exatamente onde laboro não só minhas obras e meu diálogo com as que participo/colaboro, mas também minha percepção sobre o mundo que me rodeia, sobre as complexidades dos seres humanos e as minhas próprias - estas que desvendo e aprofundo a cada nova lida.

É muito perceptível para mim hoje o quanto este fazer artístico me moldou até aqui e o quanto olhar para os meus trabalhos sempre revelou mais camadas sobre mim mesma. De um modo peculiar, a intuição no processo criativo - unida à somatória de técnicas e experiências de minha trajetória - foi me mostrando mais sobre mim do que eu mesma imaginava revelar. Um exemplo concreto: minha transição de gênero. Não que a arte tenha sido a única responsável por ela, mas foi no dia em que vi um filme passando em minha cabeça e me mostrando todas as minhas escolhas de personagem, os assuntos que tratava em minhas criações e as inquietações que me moviam, que tudo se resumiu em uma palavra - travesti. A matemática não é assim tão exata, tão previsível e reproduzível, mas assim foi e assim continua sendo em relação às outras tantas camadas que me constituem.

Atualmente, trabalhando em meu primeiro álbum musical e retornando aos ensaios do espetáculo "Brenda Lee e o Palácio das Princesas" para sua versão presencial, tenho me deliciado com essas aulas sobre mim mesma. Enquanto me provoco e sou provocada pelas demais pessoas que participam destes processos, vou identificando em minhas escolhas éticas e estéticas movimentos em direção ao que almejo de mim. Numa tentativa de me recriar, de me possibilitar novas atitudes, perspectivas, humores e entendimentos, passo a testar estas Marinas em meus traços na cena. E assim também no inverso, construindo Cínthia (personagem de "Brenda Lee") e lapidando os estados de minha performance para o show deste novo projeto musical autoral, vou me conhecendo e percebendo o quanto estes universos vão remoldando meu caráter, minhas posturas, minhas vontades.

É como se cada nova postura física, cada articulação redesenhada, cada humor aplicado em uma frase ou verso cantado me dissessem mais sobre mim e eu dissesse mais sobre o mundo. Na tentativa de ajustar meu corpo ao propósito desses trabalhos, esses propósitos me ajustam também, e não tornando tudo mais apertado, como se tentasse fazer caber em mim algo que é maior do que eu, mas de eu me ampliar a tal ponto que descubro estas possibilidades em cada centímetro de meu corpo. Ajustar para buscar a justeza, a medida exata do que é necessário, e para isso é preciso a desmedida. É no excesso e/ou na falta em cada tentativa, no transbordar ou na sensação de que ainda não foi encontrado o movimento adequado, que vão se percebendo as doses do feitiço. E esse é um exercício diário, pois cada ensaio é um novo ensaio, cada apresentação uma nova possibilidade e cada dia uma outra Marina que se apresenta neste jogo de testes.

Nessa dança vou crescendo para dentro, ampliando meu alcance e possibilitando tantos outros rumos e humores. E não, não são mil maravilhas esses ensaios de mim... é preciso muita coragem para estar em contato consigo mesma com tanto afinco e com tamanha constância. O ofício de artista - e insisto na palavra "ofício" pois é de trabalho, de uma profissão que falamos - é árduo, persistente, obscuro e cheio de dúvidas, mas nessa jornada vamos encontrando pistas, fagulhas que nos alertam se é por ali que devemos continuar a trilhar ou não. É muito teste, muito erro e alguns acertos, ou melhor, encaixes, pois quem é capaz de medir o que é certo ou errado nessa errância toda da vida? Quem é dotado de tamanha coesão para saber o que se deve ou não ser ou fazer?

Tudo isso me amedronta, e ao mesmo tempo me excita. É exatamente esse misto de prazer e angústia que move meus passos, cada vez mais profunda em mim, cada vez mais aberta para o mundo. E por mais que isso tudo possa soar terapêutico, insisto, isso é ofício, é labor, é profissionalismo aplicado em cada detalhe. O mergulhar no processo de trabalho é uma investigação com objetivos, já o que aprendo de tudo isso é durante, mas muito - e principalmente - depois, quando a sala de ensaio já foi deixada e outras coisas do dia tomam meu momento. É sobre se aproveitar do que se revela no ato para reelaborar o sujeito, seja da vida para o trabalho ou vice-versa.

Não duvido que as tantas outras profissões também provoquem tais remodulações em quem as experiencia, e isso é, para mim, muito interessante de se observar. Cada uma em seus limites, afetam como vemos o mundo, como nosso corpo se comporta, como as nossas relações se estabelecem. Enrijecem ou ampliam nossas possibilidades. Mas insisto que sendo artista, talvez até mesmo pela inadequação que muitas vezes me transporta para esse ofício, pela sensação de que tudo está fora do lugar, que eu me instigo tanto em investigar. Essa inquietude, esse desajeito, que poderia até ser uma fragilidade a olhos rígidos, no treino vão se fazendo coragem, pergunta, provocação, e é aí que mora o motivo de quererem tanto acabar com a nossa profissão. Somos ameaça para o que é duro e raso, somos um perigo para quem quer a qualquer custo alienar e controlar a população, e, exatamente por isso, somos cruciais para que a dignidade humana da nossa sociedade não seja limada, escorrendo ladeira abaixo em prol do poder de tão poucos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL