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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Somos o sonho de Brenda Lee: Quando o teatro também é continuidade da luta

Verònica Valenttino como Brenda Lee em "Brenda Lee e o Palácio das Princesas?" - Ronaldo Gutierrez
Verònica Valenttino como Brenda Lee em 'Brenda Lee e o Palácio das Princesas?' Imagem: Ronaldo Gutierrez

15/06/2022 06h00

Na última quinta-feira estreamos o espetáculo musical "Brenda Lee e o Palácio das Princesas" no Teatro do Núcleo Experimental. A peça conta a história de Brenda Lee, travesti pernambucana radicada em São Paulo, que nas décadas de 80 e 90 foi uma figura importantíssima acolhendo travestis vulnerabilizadas em sua casa, que pouco a pouco se tornou refugio para todes que precisassem de cuidados durante a epidemia do HIV/AIDS. Brenda, junto com o Dr. Paulo Roberto Teixeira, foi responsável pela implementação da primeira política pública voltada para travestis no país, a primeira para doentes de AIDS, e isso numa época em que a polícia tinha permissão do Estado para matar, prender e torturar as travestis que aqui viviam.

Estrear esta peça significa não só o prazer de estar nos palcos novamente após dois anos de reclusão por conta do covid-19, nem mesmo apenas a felicidade de ver o teatro poder acontecer com potência em tempos de desmonte da cultura no nosso país, mas junto de tudo isso, a glória de podermos fazer e assistir a um espetáculo feito sobre as travestis brasileiras e protagonizado pelas mesmas.

Seis atrizes trans protagonizam a peça, somadas de mais uma (Juma Passa) que compõe a banda do espetáculo tocando contrabaixo, uma novidade na cena do teatro musical no mundo e uma resposta contundente à quantidade de transfakes que já tivemos a infelicidade de assistir nas telas e no teatro, respondendo não apenas com nosso discurso, mas com nossa arte sendo realizada - e coletivamente.

Brenda Lee foi assassinada em maio de 1996, apenas 26 anos atrás, e apesar de ser uma das responsáveis por hoje o Brasil ser referência mundial no tratamento do HIV, sua história ainda é pouco conhecida publicamente — apagamento muito recorrente quando se trata das vivências trans. Em sua época pouco se via artistas trans na grande mídia. Apesar de nomes como Roberta Close, Rogéria, Telma Lipp estarem em evidência, nossas corpas eram muito mais presentes nos cabarés, nos shows de boate, na noite - isso em relação às que conseguiam com muito custo fazer sua arte e não viver completamente a mercê da prostituição. Nesse sentido, o musical nos revela não só a história da nossa "anjo da guarda", mas a reverberação de seus feitos em nossa realidade enquanto artistas hoje.

Hoje somos sete artistas trans num mesmo espetáculo. Hoje estamos construindo esta e tantas outras narrativas artísticas a partir da nossa perspectiva, e coletivamente - algo que ainda é muito raro. Hoje vivemos a concretização de nossos sonhos, a construção de nossas carreiras para além dos estigmas enraizados na nossa sociedade. Vivendo de arte, ao invés de empurradas para a prostituição - que infelizmente ainda é a realidade de 90% da nossa população. Nós somos o sonho de Brenda Lee, somos o sonho das nossas transcestrais. Elas lutaram para sobreviver, mas também - e sobretudo - para que nós hoje pudéssemos ter uma melhor perspectiva de vida.

Não tenho a menor dúvida de que de onde elas estão, estão orgulhosas dos passos que continuamos dando, inclusive da continuidade que damos aos seus trabalhos. A Casa de Apoio Brenda Lee, primeira casa de acolhida para travestis do Brasil, hoje pode ser vista em projetos como a ONG Casa Chama, a Casa Nem — esta segunda que inclusive está correndo grande risco de fechar e precisa de todo apoio possível. Seu trabalho na área da saúde pode ser visto em nomes como Pisci Bruja e Athos Souza, que na Faculdade de Medicina da USP trabalham no intuito de aproximar a população trans das pesquisas de saúde, assim como outros tantos nomes que atuam nas UBS, CRTs, SAEs, etc. É inegável a potência dessa mulher há cerca de 30 anos atrás. São perceptíveis, concretas as reverberações de seus feitos.

Dessa forma, olhando para todo este processo podemos reconhecer o quão importante também é o que estamos fazendo hoje para as gerações futuras. Nossas conquistas e escolhas são recheadas de responsabilidade para com as pessoas trans de hoje e as que ainda virão. Minha amiga e companheira de cena Leona Jhovs diz que somos o sonho das nossas Transcestrais e que o nosso sonho é poder assistir às crianças trans vivendo suas identidades desde pequenas, livremente e com todo o suporte que merecem para serem felizes. Eu fui uma criança trans, mas precisei me esconder. Hoje sou uma travesti cheia de garra, e sede, e fome de transformação. Vejo minhas irmãs, mesmo no corre, na dificuldade da labuta diária com essa mesma sede, e é isso que levamos ao palco contando essa história toda.

Espero poder contar com vocês na plateia. Espero que este espetáculo possa chegar ao máximo de pessoas possíveis, inclusive para muito além da cidade de São Paulo. Se hoje não morremos mais de AIDS é porque uma travesti chamada Brenda Lee lutou por nós, e essas vidas salvas são de pessoas cisgêneras também. Essa história também diz muito respeito a vocês, então nada mais poderoso que nos reunirmos para compartilhar dessa memória e celebrar sua vida em nossas corpas de hoje, pintadas de toda a potência que temos para transbordar.

Serviço

"Brenda Lee e o Palácio das Princesas" (Dir. Zé Henrique de Paula)
Com Verònica Valenttino, Ambrosia, Marina Mathey, Leona Jhovs, Olivia Lopes e Tyller Antunes.
Até 03/07 no Teatro do Núcleo Experimental
(R. Barra Funda, 637. Barra Funda. São Paulo/SP)
Quintas, sextas e sábados às 21h
Domingos às 20h
Ingressos: R$30 (meia R$15) pelo Sympla
*Todos os dias são disponibilizados 30 ingressos gratuitos no teatro 1h antes do espetáculo.