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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Menina buraco negro

Domínio Publico
Imagem: Domínio Publico

29/06/2022 06h00

Desde pequena uma insatisfação
Um vazio
Vestindo de porta em porta uma falta diferente
Buscando encontrar o que atormentava tanto aquele peito

Da melancolia à raiva
A multidão e o abandono
Os excessos acompanharam seus passos
Não entendia tamanho rombo que carregava
Que as vezes disfarçava bem
Às vezes tava na cara
Consumia seu semblante mesmo que tentasse um sorriso torto

De tempos em tempos
Encontrando alguns dos pedaços
Espalhados por outrens que nem mesmo conheceram sua face chorosa
Ia alargando a bocarra
Com um dente ou outro a mais
Ou mesmo que entre lacunas
Os olhos ao menos brilhavam

Os poucos dentes mastigavam com todo o prazer do mundo
Sanavam um pouco da ausência de tudo que antes não tinha
Mas por serem tão poucos
Iam sobrecarregando
E doíam
E choravam
E cansavam de ter que dar conta do que não lhes era obrigação

Foi mudando então seus hábitos
Sua forma de dar de comer
Suas fontes de satisfação
E os dentes às vezes nem eram precisos
Os buracos, mesmo existindo
Nem sempre eram desespero
E vez ou outra aliviavam uma certa ânsia por compreensão
"Seriam motores?" - perguntou
Na sacada de quem nunca iria, talvez, completá-los
Viu no vazio um canal
Um tubo de passagem
Propulsor dessa sede de busca por aquilos que não se sabia

A insatisfação
A raiva e a melancolia
Às vezes voltavam, mas ela sabia que não seria a todo momento.
Se lhe faltavam pedaços - pensava - talvez estes ingratos
Só sejam a parte que tenho
E me falta a parte que falta
Então se propunha a pesquisa
Busca igual a de uma pirata
Caçando impossibilidades que encaixassem nas suas faltas
E como num quebra-cabeças
Ia desvendando seus passos

Às vezes não encaixavam, mas ficavam por algum tempo
Disfarçando ou insistindo em algo que talvez gostasse
Mesmo que não coubesse exatamente em seus cantos
Depois seguia seu rumo
E tornava a sucumbir nas tristezas

É muito difícil abandonar sentimentos que nos acompanham
Por mais perversos que sejam
Nos dão a sensação de um terreno
Seguro, mesmo que doloridos
Mesmo que desgraçados
Transmitem a ilusão de que nos fazem parte
Como se sem eles estaríamos sendo algo muito do mentiroso
Enquanto eles mentem que são toda a nossa resolução
Mas mesmo em seus loopings perversos
Suas quedas até o chão
Foi treinando a descida
E então suas levantadas
E cada vez mais transformava seus deslizes em dança

Num ímpeto imediato
Descia e subia no salto
Tornava a melancolia a lembrança de responder
A raiva movia seus nervos
E correspondia seus medos
Com a sede de conhecer
Um mundo inteiro de falhas
De peças mal construídas
De nebulosa caçada por lampejos de solução
E mais do que mal resolvida
Firme nas tuas caídas
Cansou de cansar dos vazios
E tornou-se imensidão
Como um buraco negro
Que mais amedronta que teme
E todos estudam curiosos
Do que tem por trás do clarão
Buraco que brilha escuro
Que mostra os rombos alheios
Que revela os anseios e falhas
Dos que nunca se saberão