Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O mundo doente é o nosso corpo estendido
Um ser humano é parte de um todo, chamado por nós de "Universo", uma parte limitada no tempo e espaço. Ele experimenta a si mesmo, seus pensamentos e sentimentos como algo separado do resto — um tipo de ilusão de ótica de sua consciência. A luta para libertar a si mesmo desta ilusão é o tema único de uma religião verdadeira. Não alimentar isso, mas superar isso é o modo para se alcançar uma medida possível de paz de espírito. Albert Einstein, em uma carta de 1950 para um amigo com dificuldades em relação à morte.
Os desastres causados pela emergência climática estão cada vez mais chocantes e inesperados. Muitas das consequências estão vindo mais rápido do que os cientistas previam. Até peixes estão morrendo em massa devido ao aquecimento dos rios, na Califórnia. No Brasil, não estamos precisando esperar até a temporada de incêndios ou o verão para eventos catastróficos.
Estamos aprendendo a lidar com as notícias sobre isso. A mídia tenta contar essa história da maneira como pode, em meio a siglas, porcentagens, nomes de gases, termos climatológicos... Às vezes soa tão... distante.
Mas se entendermos tudo que está sendo dito, sobra um choque, um querer não acreditar, a dor... Mas, no geral, talvez ainda vá levar um tempo para realmente compreendermos que nós, o clima do mundo e a vida no planeta não são coisas separadas. Isso é exatamente sobre nós. Fomos nós que provocamos e somos nós que precisamos regenerar e aprender. Não são desastres naturais. Não estão acontecendo apenas lá longe numa guerra civil africana provocada pela seca e migração em massa, numa ilha grega em chamas ou numa floresta agonizando lá longe.
Está na poluição que respiramos, na conta de energia, no glifosato cancerígeno em nosso prato, no microplástico em nossos corpos, na seca, nos onipresentes grãos transgênicos, na exterminação indígena, na carne do boi da fazenda desmatadora, no combustível de nossos veículos, no desaparecimento permanente de formas de vida que acumulam centenas de milhões de anos de sabedoria natural...
Criamos esse inferno com nossas visões sobre política e economia, com as coisas que compramos, com a indiferença diante da predação de nossa sociedade, com a passividade diante da colonização de nossas mentes.
Vai levar mais tempo ainda — se é que um dia isso vai acontecer — para percebermos que, sem pressão ativa da sociedade, os governos e corporações não vão resolver esses problemas. Por si mesmos, nunca resolveram, durante as décadas em que este desastre vem sendo construído.
Basta olhar o que está sendo — e de certo modo sempre foi — feito.
Desmatamento recorde, PL da grilagem, projeto da Ferrogrão, privatizações interesseiras que, no caso da Eletrobrás, vão até aumentar as emissões de gases do aquecimento...
É comum olharmos esses desastres e nos isolarmos. Como somos a única espécie animal que, por exemplo, cria artefatos eletrônicos como celulares, talvez imaginemos que já transcendemos a natureza. Estaríamos num patamar superior, ela já não nos diz respeito. Até quando dizemos "animais", assumimos que eles são uma outra coisa, diferente de nós. Por exemplo, "direitos dos animais", na verdade, se referem só a animais não humanos.
Vai levar um tempo também para entendermos que a natureza e o mundo são nosso corpo e mente estendidos. O consagrado biólogo Edward O. Wilson lançou a ideia de "biofilia", uma tendência inata humana para amar organismos e conjuntos de organismos biológicos. Por que isso? Talvez porque a natureza tenha amor próprio, se movendo em direção à vida que é ela mesma, dentro de nós.
Talvez seja por isso também que há tantos benefícios comprovados para quem passa um tempo em meio à natureza. Por exemplo, redução de corticoides de estresse, cura de inflamações, melhor autoestima e saúde em geral.
Cultivar essa expansão de nossa identidade é algo fundamental para superarmos esta fase imatura e autodestrutiva de nossa história na Terra. Na verdade, a ausência dessa compreensão é o que está no centro da crise.
Em diversas tradições espirituais, fala-se muito sobre a sabedoria da interdependência, do fluxo, do todo, das coisas como meros processos interligados. A ciência e filosofia ocidental também falam essa língua, por exemplo, na teoria geral de sistemas, no panpsiquismo, ou até no conceito de ecologia que aprendemos nas aulas de biologia — nenhum ser é independente de seu ambiente e dos outros seres.
Não é preciso nenhuma inclinação esotérica para cultivarmos essa sabedoria secular de nossa interdependência biológica e física com tudo que existe. Dentro dessa visão, é preciso algum mandamento moral que venha de fora? Absolutamente não. Somos a natureza, somos o mundo. Então cuidamos, respeitamos, aprendemos, amamos.
É daí que pode surgir por exemplo valores como altruísmo universal, ancorado em princípios puramente naturais. Muitas vezes noções como compaixão incondicional são descartadas como algo religioso ou utópico. Mas isso se conecta intimamente com nossa identidade biológica maior. Esse amor não apenas é o resultado de um melhor entendimento sobre nós e o mundo, mas em si mesmo, também é o que revela essa interconexão.
Do contrário, onde terminaremos se seguirmos cultivando o ódio mútuo por quem discorda de nossos gostos pessoais ou ideias políticas?
Em ramos como filosofia da mente ou neurociência, já há diversas teorias que explicam nosso senso de um eu estritamente individual e isolado como sendo apenas uma função evolutiva, que nos permite atuar como seres sociais, planejando metas e prevendo interações. No entanto, quando o individualismo extrapola essa função prática, tornando-se egoísmo doentio também em nível coletivo, surgem desequilíbrios como os atuais.
Não precisamos esperar a chegada de revolucionários níveis de autoconhecimento para começarmos a regenerar nossa civilização. A atual urgente ameaça à vida exige que façamos as duas coisas ao mesmo tempo, já que uma coisa leva à outra.
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