Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Somos a realidade maior da vida
Apesar das aparências e de tudo que nos fizeram acreditar, há algo em nós profundo como o oceano, vasto como o espaço e tão intrincado quanto a própria vida. Pode parecer espiritual, mas não tem necessariamente ligação com nada sobrenatural. Pelo contrário, é apenas um aspecto essencial da realidade de que nos desconectamos. Na verdade, isso é a própria vida, a identidade maior que dá sentido à individualidade.
Em momentos de crise como o atual colapso natural, uma cultura regenerativa que enfatize esse aspecto é essencial para compreendermos o que está acontecendo e corrigir o curso. Infelizmente, como sociedades, estamos longe desse entendimento: nossa cultura (auto )destrutiva é o que domina.
Ela nos diz que estamos sós e temos que vencer na marra, afirmar nossa superioridade. Temos valor na medida que nos invejam e, para conseguir isso, vale mais ou menos tudo — incluindo explorar, subjugar e até destruir coisas menos importantes como outros seres vivos. Para cada pessoa vencedora nessa história, milhões perdem.
Em geral, as instruções não são tão explícitas assim, nem partem de uma entidade conspiradora central. Já estão dentro de nós. Não é comum sentirmos um tipo de presença invasiva e prejudicial nos controlando? Pelo menos esse é o tema de muitas de nossas histórias favoritas, até mesmo na religião.
Felizmente, há como fazer diferente, e isso em si já prova que esse processo todo de destruição é antinatural e desnecessário — caso fôssemos assim por natureza, não haveria como deixar de sair por aí destruindo tudo como bestas sanguinárias.
Como sociedades, perdemos de vista nossa identidade mais básica, que coopera com outras formas de vida e que, ao longo de bilhões de anos, suas múltiplas combinações deram origem ao que somos. Perdemos de vista que não somos independentes, mas dependemos do ambiente natural a ponto de sermos inseparáveis dele. Quando o mundo natural adoece, adoecemos junto.
No final, somos a própria vida, e isso não significa que seja preciso descartar a individualidade. O que acontece é que quando um plano individual não harmoniza com o conjunto, ele acaba prejudicando-o. Basicamente é isso o que estamos vendo em escala massiva, em que valem mais os interesses de uma parcela ínfima da humanidade, extremamente privilegiada, com todo o poder que a riqueza doentia traz em uma civilização que gira em torno dessa deformidade.
Hoje, esse tipo de sabedoria que transcende o ego ou indivíduo em direção a uma dimensão fractal ampla já não é exclusiva de tradições espirituais ou povos originários. A interligação de todos os fenômenos está cada vez mais presente na ciência e filosofia. Essa interdependência, no final, é o que revela nossa identidade maior. Assim, já temos a disposição uma sabedoria transcendente laica, que penetra níveis mais ocultos da realidade e vai além do eu individual.
Ela implica também uma compaixão natural: olhamos ao redor e reconhecemos nossa natureza. Podemos então cuidar e celebrar a vida da mesma maneira como fazemos com nós mesmos, sem a necessidade de um mandamento moral externo.
Promover esse tipo de olhar o mundo e a nós mesmos pode ajudar a corrigir o atual curso autodestrutivo de nossa civilização. Infelizmente, a cultura dominante é outra. Em meio a sintomas inequívocos de degeneração planetária como epidemia global, ascensão de autoritarismos fascistas, colapso ecológico, emergência climática, etc, continuamos como se quase nada estivesse acontecendo.
Há uma lenda urbana sobre colocar um sapo (ou caranguejo) em uma panela com água e ligar o fogo. Ele, então, acabaria sendo cozinhado vivo sem reagir. Sem se incomodar, ele só perceberia os pequenos e graduais aumentos de temperatura.
É uma lenda. Obviamente que esses animais notam sim a fervura e lutam desesperadamente para sair dali. Mas a anedota ilustra nossa própria situação diante do colapso ambiental que vivemos e causamos. Percebemos a seca, o calor, os eventos climáticos extremos, o desaparecimento massivo de espécies (incluindo 70% dos anfíbios, como o dessa história), a devastação das florestas...
No entanto, como sociedade em geral, achamos que isso não deve ser tão grave. Tragicamente, essa também foi nossa reação desde os primeiros sinais da crise, há várias décadas. E depois, provavelmente será assim que reagiremos, quando as coisas estiverem muito piores.
Como os efeitos são graduais e pequenos no curto prazo, não percebemos que também estamos sendo cozinhados vivos, por nós mesmos. Fazemos isso não só com o sistema de produção e destruição que sustentamos, mas também pela negação grosseira ou sutil do problema, pela indiferença e a consequente inação. Um exemplo: apenas a poluição de combustíveis fósseis — sem mencionar o aquecimento global — mata mais de sete milhões de pessoas por ano, mais do que guerras ou a atual pandemia.
Tudo parece tão normal. Mas se um alienígena chegasse aqui repentinamente, não entenderia como, enquanto nosso mundo é destruído, permanecemos hipnotizados pelo narcisismo das redes sociais, adorando pessoas famosas, ansiosos pelo próximo grande filme de Hollywood, campeonato esportivo ou qualquer outra coisa... Ou então o hobby é ficar ofendendo mutuamente a facção política rival.
Como diz o autor Umair Haque, é em momentos como este que precisamos de uma dimensão cultural que traga algum sentido ou propósito. Mas o que encontramos é esta cultura de egoísmo, cobiça e ignorância. Podemos sim fazer melhor que isso, mas a questão é: faremos?
Convite
Convido a quem se interessar sobre este tema para essa palestra on-line gratuita que vou participar.
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