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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A grande consciência da vida

Birdwatching - periquito hor - Luiz Novaes/UOL
Birdwatching - periquito hor Imagem: Luiz Novaes/UOL

Emersom Karma Konchog

15/05/2022 06h00

Em um artigo recente, mencionei uma cena assustadora do consagrado livro de ficção climática "Ministry For The Future" (2020), sobre uma onda de calor assassina na Índia. Já a realidade da atual situação nesse país também está provocando um horror que não imaginávamos: pássaros estão caindo do céu devido ao calor batendo nos 50°C no norte indiano e no Paquistão.

Notícias como esta se empilham junto com outros sinais de nosso cego rastejar para o abismo. Por exemplo, agora há 50% de chance de estourarmos em cinco anos a meta "segura" para o aquecimento global de 1,5°C (em 2020, a chance era de 20%). "Segura" realmente precisa de aspas, pois se o atual aquecimento de 1,1ºC — em relação ao que era antes da emissão massiva de poluentes — já derruba pássaros voando, eleva a temperatura na Antártica em 40°, e mata salmões em rios aquecidos, imagine a situação com a meta de 1,5°, ou os 3° ou 4ºC previstos caso não efetivemos mudanças radicais.

Por aqui no Brasil, também parece que não há nada de muito animador, como os sucessivos recordes de destruição da Amazônia e toda política de destruição do atual governo. Mesmo com a possível troca de governantes à vista diante da urgente necessidade de intensos compromissos ambientais, as perspectivas também não são as melhores, levando em conta que outros governos também passaram longe de assegurar o ambiente que vivemos. A esperança é que, pelo menos, um novo governo esteja aberto para discutir as medidas emergenciais socioambientais.

Coincidentemente, vi essa notícia sobre pássaros desidratados caindo do céu logo após assistir esta pungente adaptação em vídeo (em inglês) do breve conto "O Grande Silêncio", de Ted Chiang (que pode ser lido em português aqui):

Já mencionei essa história, mas vale a repetição, pois diante desta 6ª grande extinção que testemunhamos, sua mensagem — que harmoniza a ternura da arte com a sobriedade da ciência — se torna muito poderosa.

O tema central de "O Grande Silêncio" é o contraste gritante entre as gigantescas inovações científicas com nossa cegueira básica impedindo que enxerguemos: aquilo pelo qual ansiamos intensamente pode já estar bem aqui. Ao mesmo tempo que temos um radiotelescópio gigantesco capaz de enviar e receber mensagens do espaço sideral, em busca de comunicação com outras possíveis formas de vida, estamos cegos para o fato de que essas inteligências desconhecidas — com capacidade comunicativa até — já existem aqui na Terra.

Permanecemos em virtual ignorância sobre o que é a vida, ou do que ela é capaz. E isso não se restringe à consciência inteligente dos papagaios dessa história. Por exemplo, recentemente foi descoberto que abelhas conseguem distinguir números pares de ímpares, enriquecendo suas já conhecidas habilidades, como a comunicação através da geometria, a capacidade de aprender o significado de símbolos arbitrários ou de deliberar democraticamente sobre onde será estabelecida uma nova colmeia. E não é que abelhas sejam particularmente especiais. Sabemos isso pois elas foram mais estudadas que outras espécies. Certamente, há muito o que revelar em outras formas de vida, se cultivarmos a sabedoria de não permitir seu extermínio.

Diante dessas "curiosidades" sobre a inteligência não humana, alguém poderia argumentar:

— Tudo isso é muito interessante, mas como ficam os humanos? Eu me preocupo mais é com todas essas pessoas sofrendo.

Muito justo. Mas a questão principal aqui também é sobre nós: aquilo que imaginamos ser características que definem nossa humanidade — como por exemplo, inteligência e sensibilidade — estão presentes também em não humanos.

Todos sentimos profunda conexão com outras pessoas em luto, que prestam homenagem ao ente querido no ritual fúnebre e visitam os restos mortais muitos anos após a perda. Poderia ser dito que a sensibilidade por trás disso é um dos elementos fundamentais de nossa humanidade. Pois já foi observado que uma espécie não humana, exterminada para que suas presas sejam vendidas e que agora também morre de sede nas áreas devastadas pela emergência climática, faz exatamente a mesma coisa: elefantes — e chimpanzés também se comportam de modo similar.

O amor e cuidado que dirigimos a nós como sendo uma "espécie especial" (nos casos em que isso existe, já que o contrário é tão comum), poderia ser expandido para toda a vida. Hoje, já está estabelecido cientificamente o comportamento inteligente e empático mesmo de vegetais, como a árvore que doa seus recursos antes de morrer.

A melhor compreensão sobre como inteligência e consciência não se restringem a humanos traz uma nova perspectiva sobre o que é a vida e quem somos: não temos supremacia nem o direito de continuar explorando e destruindo tudo. Nossas habilidades surgem de uma vida maior que nos transcende, distribuída em toda natureza, cuja soma sim representa o tipo de consciência superior que, em nossa arrogância, imaginamos ter como posse individual.

A disseminação ampla de uma visão de mundo desse tipo deveria estar na base de uma bem-sucedida adaptação, mitigação e regeneração de tudo que já destruímos. Ou então, restaria nos render ao "grande silêncio", como o conto de Ted Chiang expressa:

"O paradoxo de Fermi algumas vezes é chamado de 'O Grande Silêncio'. O universo deveria ser uma cacofonia de vozes, mas em vez disso é de uma quietude desconcertante. Alguns humanos teorizam que espécies inteligentes são extintas antes de elas conseguirem se disseminar pelo espaço sideral. Se eles estiverem corretos, então a quietude do céu noturno é o silêncio de um cemitério. Centenas de anos atrás, minha raça era tão abundante que a floresta de Rio Abajo ressoava com as nossas vozes. Agora nós estamos quase dizimados. Em breve a floresta tropical pode estar tão silenciosa quanto o resto do universo." (trecho da tradução de Melvin Menoviks)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL