Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Luto e esperança
Sinto-me doente com a destruição do mundo em que vivemos. É uma sensação cada vez mais disseminada por todo o mundo.
Antes, quando eu contemplava, por exemplo, um aspecto positivo da vida, a ideia de um futuro já vinha acoplada nas bordas, subliminarmente, como uma continuidade do presente, do bem que vivencio, de possibilidades auspiciosas etc. "Isso deve continuar mesmo que este corpo não esteja mais aqui". É o que alimenta muito do sentido de propósito que tentamos trazer para a vida.
Agora, a sensação é que essa perspectiva foi amputada. É bem provável que o ambiente em que vivemos e aquilo que depende dele — que é basicamente tudo — continuem só degenerando. Assim, sobra uma ausência de mundo, algo muito parecido com a perda de alguém que amamos profundamente. Como viver com essa lacuna?
Tal vazio é mais problemático do que parece. Por exemplo, no clássico da ficção científica "Childhood's End" (1953), Arthur C. Clarke imaginou um futuro em que a humanidade vai se extinguindo simplesmente por não haver esperança de nenhum futuro desejável (devido a um evento de proporções cataclísmicas).
A dor da atual desolação ambiental costuma ser chamada de "ecoluto", "solastalgia", "ansiedade climática" etc. No exterior, abordagens psicoterapêuticas para isso já começaram a se estabelecer, já que é um distúrbio intensamente debilitante.
Penso que, na medida em que formos capazes, esse é um sentimento que deve ser acolhido, compreendido e absorvido, assim como precisamos fazer no luto: não é muito produtivo tentar lidar com a dor da perda apenas com antidepressivos — compreender e aceitar o lado menos confortável da realidade faz parte da vida.
De certo modo, isso também se aplica para essa dor maior, dessa perda mais vasta, quase inconcebível, que não cabe no coração e mente.
Como diz Sidarta Ribeiro em seu novo livro "Sonho Manifesto":
"Enquanto nosso pequeno planeta azul viaja pelo espaço sideral, a soma total de dor em sua superfície aumenta como nunca antes, tracionada por um sistema capitalista que devora corpos humanos e não humanos num apetite cada vez mais insaciável. Se todos os seres que sofrem pudessem mugir, berrar e chorar ao mesmo tempo, seu desespero se transformaria num deprimente, longo e absolutamente horripilante gemido planetário".
Esse ecoluto é sentir de modo bastante palpável esse gemido, como se essa imensa dor fosse realmente nossa. É a que se referia também o mestre budista Thich Nhat Hahn sobre a necessidade de "sentirmos a Terra chorando dentro de nós". Apesar de doloroso, no fundo, é uma expansão do amor e compaixão. É algo que injeta vida na existência e desperta a possibilidade de regeneração.
Para quem se identifica com esses sentimentos, "Sonho Manifesto" é um alento maravilhoso. E não apenas nesse caso específico: também é um dos livros fundamentais para entendermos o momento único que vivemos. Não cheguei na metade da leitura, mas já sinto os benefícios de seu brilho, que irradia uma habilidade única em dar voz à dor da biosfera e ao impulso curativo da natureza dentro de nós.
Sidarta chama seus capítulos de "exercícios de otimismo apocalíptico": ao mesmo tempo que caminhamos cegamente rumo à destruição do mundo como conhecemos, a possibilidade de transformação e regeneração está bem aqui. Não é preciso nenhuma tecnologia milagrosa ou ideia inédita: já temos o que é preciso. Só não está bem distribuído, apreciado e implementado.
A palavra apocalipse costuma despertar sentimentos contraditórios: ao mesmo tempo que há um fascínio premonitório com nossa própria aniquilação, automaticamente viramos a cara, desconsiderando essa possibilidade como um exagero alarmista.
No entanto, na origem do termo, apocalipse não era sobre o fim do mundo, mas sobre uma grande revelação, sobre o desvelar de uma realidade fundamental até então encoberta. Nesse sentido, definitivamente, estamos em um apocalipse.
Por que se fala tanto em "sustentabilidade"? Simplesmente porque o modo como existimos não se sustenta, levando à autodestruição. A revelação aí é que basicamente falhamos como espécie, pelo menos no que se refere a modos de produção e consumo e, consequentemente, organização política e econômica. Mas a base desses enganos não está apenas na atual organização social, política e econômica. Individualmente, também carregamos as mesmas sementes destrutivas, na forma dos mais variados supremacismos: "minha classe é mais importante, meus lucros, minha etnia, minha ideologia" etc.
Ao nos considerarmos tão importantes, a ponto de enxergar tudo o mais como dispensável, estúpido, explorável e descartável, chega a hora em que a realidade aparece, às vezes de forma bem dolorosa, como agora.
Felizmente, esse "desvelar apocalíptico" inclui também a revelação de uma dimensão maior: a vida transcende nossos corpos e mentes, diferentes níveis de consciência se ramificam em todas direções, a natureza não é algo lá fora, não somos donos da biosfera terrestre, competição e predação não são mandamentos absolutos, é possível amar sem interesse, proteger sem esperar lucro, ajudar sem expectativa de vantagem, viver sem destruir.
Pode parecer óbvio, mas então por que não alinhamos nossa maneira de existir dessa maneira?
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