Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O cosmos dentro de nós
"Olhe para o céu; lembre-se do cosmos. Busque a vastidão em toda oportunidade, para enxergar a pequeneza de si."
Matt Haig
"Cosmos" é uma das palavras que mais gosto. Provavelmente devido à série televisiva de divulgação científica de mesmo nome, que passou por aqui nos anos 80, quando eu tinha uns cinco anos. Não esqueço da hipnótica trilha de abertura de Vangelis, em meio às imagens de galáxias e estrelas.
Entre as pérolas de seu idealizador e apresentador Carl Sagan, há essa:
"Somos representantes do cosmos; somos um exemplo do que átomos de hidrogênio podem fazer, tendo à disposição 15 bilhões de anos de evolução cósmica."
Um tema recorrente no modo como Sagan narrava a saga do universo era a interconexão não apenas da vida, mas de toda a existência, como diz em outra de suas frases eternalizadas:
"O cosmos está dentro de nós. Somos feitos da mesma coisa que as estrelas."
Não apenas estrelas, mas também oceano, peixes, nuvens, montanhas, abelhas, barro e tudo mais nessa teia interconectada que chamamos de vida, existência, mundo ou universo.
O termo "cosmos" hoje é usado como sinônimo de "universo", mas esse não é seu significado original. Ele é parente da palavra "cosmético". Em seu âmago, está a noção de beleza, harmonia e perfeição. É exatamente essa epifania que permeia as experiências humanas consideradas mais sublimes, como aquelas que são interpretadas como sendo a união com um absoluto espiritual.
Imagino que isso seja descrito como uma "experiência de outro mundo" porque é uma alegria, ou êxtase, que não conseguimos obter com prazeres materiais. A fugidia satisfação pessoal e individual que experimentamos quando obtemos o que desejamos está misteriosamente ausente na experiência dessa comunhão. Ela sugere algo infinito. "Então, só pode ser alguma coisa transcendente, divina ou talvez até extraterrestre", imaginamos. Mas, na verdade, não. É simplesmente o que sempre esteve bem aqui: é a própria vida, natureza ou realidade que não conseguíamos enxergar.
Como sempre falo, uma das pontes mais diretas para esse tipo de abertura é o mundo natural. Ao descobrirmos que a natureza não é algo lá fora — não apenas intelectualmente, mas como algo vivenciado na pele —, surge naturalmente essa realidade extraordinária, com uma elegância majestosa, muito além da apreciação estética.
Uma consequência da integração dessa visão em nossas vidas é uma ética natural, que surge de dentro, como sendo nossa própria natureza e de tudo mais. Assim, podemos nos tornar instrumentos do impulso regenerativo da própria vida. Ao descobrir isso dentro de nós, surge uma mente amorosa, um coração habilidoso, capazes de cuidar, de se reconhecer não apenas em tudo que vive, mas também em toda existência, em Gaia ou até no cosmos.
Esse tipo de princípio regulador é muito mais eficaz do que os valores morais tradicionais que regem a vida em comum nas sociedades humanas. Porque não é algo que vem de fora, de cima para baixo, que suprime desejos e impulsos individuais, em nome sabe-se lá do quê.
As atuais crises que devastam o mundo em múltiplos aspectos, no fundo, estão se desdobrando a partir de uma crise de significado ou propósito, que acaba se tornando também uma crise de valores ou ética. A destruição não é vista como algo condenável porque ela é feita em nome de um suposto "progresso", de uma suposta "economia", de uma ideologia com significados obscuros, que ninguém entende muito bem o que é. A vida não é entendida em sua verdadeira realidade. E aquilo que apreciamos, cultuamos e buscamos acaba tendo essa "beleza" pra lá de questionável.
"Salve-se quem puder e, para isso, vale tudo."
Vivemos de um modo em que o dano e o malefício estão encrustados nos níveis mais profundos, a ponto de não termos a escolha de não prejudicar outros seres, por exemplo, nos produtos que compramos. Mas infligir danos alheios também dói, mesmo que isso não seja sentido imediata e individualmente. Travamos num ciclo vicioso de trauma mútuo.
Lembro de um filme muito bom, também sobre nosso lugar no cosmos: "Interestelar". Nele, o personagem Cooper lamenta:
"Costumávamos olhar para o céu e imaginar nosso lugar entre as estrelas. Agora, apenas olhamos para baixo e nos preocupamos com nosso lugar na sujeira."
Então, essa crise cultural, de valores sobre o que buscamos e prezamos, também precisa ser trabalhada nesse nível. Disseminar esse tipo de ética é um "trabalho de formiguinha" essencial, que podemos fazer. Como diz Richard Powers (autor do consagrado épico ambiental "Overstory"), no livro "Bewilderment":
"… se uma massa crítica de pessoas, apesar de pequena, recuperar um senso de parentesco (com tudo mais), a economia se tornaria ecologia. Iríamos desejar coisas diferentes. Encontraríamos nosso significado lá fora."
A necessidade de uma transformação no modo como vemos a nós mesmos e o mundo não é sobre rapidamente reverter a atual direção catastrófica para onde rumamos. Já que o relógio está correndo, isso exige transformações muito mais rápidas e imediatas como, por exemplo, políticas governamentais.
Mas, no final, sem essa mudança interna, as transformações externas aliviariam apenas os sintomas de uma patologia muito mais profunda, sem tocar no núcleo propagador. A longo prazo, isso será sim uma etapa crucial. E, a curto prazo, pelo menos salvamos a nós. Não é porque o mundo degenera que também precisamos degenerar.
"Em todo caos, há um cosmos; em toda desordem, uma ordem secreta."
Carl Jung
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