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Milo Araújo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pneu furado e o exercício da autonomia feminina

Mulher ciclista - iStock
Mulher ciclista Imagem: iStock

Milo Araújo

20/05/2022 13h03

Não é de hoje que a gente sabe que a socialização feminina é um lixo. Bora falar a real. Somos criadas para termos complexo de Cinderela. Nossa busca por alguém que possa nos salvar é eterna. A lógica é que sejamos passadas da tutela de um homem para a tutela de outro homem.

Claro, nem sempre é assim tim-tim por tim-tim. Você pode ter tido uma família diferente, ou ter tido um pai ausente, ou você não é heterossexual, portanto nunca procurou um homem no âmbito romântico. Porém, a ideia da Cinderela está no nosso imaginário coletivo. A gente bebe do suco ácido do patriarcado o tempo todo. A sociedade cria e ensina também. Não é de se impressionar que as mulheres se sintam menos capazes de liderar, de viajar sozinhas, de construir coisas com as próprias mãos, ou mesmo de abrir um simples pote de vidro (rs).

É duro crescer com essa programação na cabeça. São crenças limitantes que nos são implantadas na cabeça desde a primeira infância. Nunca somos estimuladas a fazer descobertas ou sermos seres exploradores. O medo nos espreita desde muito pequeninas. Nossas famílias tinham medo dos arranhões em nossas pernas lisas ou mesmo quem sabe da possibilidade de quebrarmos um nariz. Logo nós, que precisamos de um rosto bonito para ganhar a vida (ironia).

Dado esse contexto, reafirmo que o exercício da autonomia é uma ação ativa. Ao mesmo tempo que a sensação de liberdade é deliciosa, ela nos traz medo e insegurança. Porém, não nos cabe mais o conformismo da vida feminina pré estabelecida no seio familiar. Não é à toa que umas e outras são tachadas de loucas. O exercício da autonomia feminina é chocante mesmo, mas fé na deusa que todas e todos nós iremos nos acostumar.

E vocês acreditam que eu estava refletindo sobre essas coisas por conta de um pneu furado? Aquele pneu furado do texto passado. Putz, esse pneu me pegou numa hora ruim, mexeu comigo. A bike ficou um tempinho parada por conta disso. Toda vez que eu olhava pra ela eu me deparava com a minha incapacidade de trocar o pneu. Eu sei que é um trabalho simples, mas só que não.

Posso ter falado brevemente sobre nosso complexo de Cinderela, mas esse assunto é deveras profundo e não cabe num artigo de opinião. Nascer mulher é ser castrada no ato de vir a esse mundo, logo após termos a orelhinha furada, indicando nosso gênero. A partir daí são inúmeros os rituais violentos de desestímulo até chegarmos na incapacidade de trocar um pneu.

Contudo, gostaria de dizer que não troquei a câmara do pneu, mas tirei a roda e depois montei ela de volta na bicicleta corretamente, de forma que mantenho todos os dentes da boca intactos, e sinto orgulho do meu progresso nessa questão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL