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Milo Araújo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Virada Cultural e o abandono do centro de São Paulo

Movimentação policial durante a Virada Cultural no palco do Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo, marcada pela violência durante a noite de sábado. - ISAAC FONTANA/CJPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Movimentação policial durante a Virada Cultural no palco do Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo, marcada pela violência durante a noite de sábado. Imagem: ISAAC FONTANA/CJPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Milo Araújo

10/06/2022 06h00

Depois de dois anos de isolamento, admito que estava muito ansiosa para ir a uma festinha pública. Saudades demais de estar no centro de São Paulo caminhando e topando em estruturas montadas com muita gente ao redor, música rolando e projeções nos prédios. Acho que fiquei tanto tempo em casa, casa de amigas e espaços privados, que estava numa ânsia muito grande de estar ali derretida e misturada na coisa pública.

Sabemos que os palcos descentralizados pelos bairros se saíram muito melhor do que os palcos no Anhangabaú e Praça das Artes. E pensando bem, dava para prever que nossa Virada Cultural no centro seria mais para uma cena de batalha. Aquele território está em disputa, e uma festa no meio não apaga os conflitos que se dão naquele espaço. Para quem não sabe, houve inúmeros arrastões em períodos curtíssimos de tempo entre eles. Também aconteceram muitos espancamentos e confusões generalizadas. Completamente insalubre.

Eu cheguei no metrô São Bento lá pela 00h30, mas já fui avisada via SMS (comprei um celularzinho dos anos 2000 para me comunicar nessa noite, que é famosa pelos furtos de celulares) para não passar pela catraca. O movimento na estação também estava estranho. Muitas pessoas adentrando a plataforma, e eu estava esperando o contrário. Muitos adolescentes, marcando presença pela primeira vez, mostrando caras assustadas. Perguntei para algumas pessoas o que estava rolando e me disseram que lá em cima o clima estava de guerra. Minhas amizades chegaram logo menos dizendo que viram um rapaz ser espancado até ficar inconsciente por um grupo de aproximadamente 40 pessoas.

Não sejamos ingênuos. A gente sabe dos riscos que envolvem o centro de uma cidade enorme e complexa como São Paulo, ainda mais pela noite, numa noite como essa. Mas até aí, perder um celular numa manobra furtiva é bem diferente de um espancamento em gangue. A rua estava furiosa e o clima bem tenso. E, infelizmente, não é uma surpresa. No mesmo mês da virada tivemos a noite mais fria do ano. Nessa mesma noite, houve ação por parte da prefeitura de jogar nas ruas as famílias da Ocupação Irmã Dulce, localizada no centro.

Várias famílias com crianças engordando o número de pessoas vivendo em situação de rua no mês de maio. Também tivemos invasões da Cracolândia, com direito a muita violência e apavoro policial, novamente tratando como caso de polícia o que é na verdade caso de saúde pública. É facil falar mal de eventos como a Virada Cultural, que diga-se de passagem, é um dos eventos mais legais que existem em SP. Difícil mesmo é olhar de frente para a causa dos conflitos sociais que se dão por ali.

É viver em outro mundo, promover esses tipos de atitudes e esperar um evento de rua com tranquilidade e paz. A palavra que define o centro de São Paulo atualmente é abandono. São muitas as problemáticas que circundam o território, mas agora focando na questão cultural, é difícil não enxergar o movimento de privatização das festas. Na noite da Virada, quem teve muita coragem, ficou, e quem tinha dinheiro foi para uma festa privada. É preciso pensar com muito carinho ações para a integração das pessoas que moram e circulam no centro da nossa cidade, e não ações higienizantes, aporofóbicas e com resultados desastrosos como presenciamos na Virada.