Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
O nosso problema é que a vida continua
Existe uma sensação - que acho que não existe nome, mesmo eu querendo muito que tenha - de quando você volta para sua cidade natal depois de ter passado um tempo prolongado longe de lá e você percebe que mesmo sem você ali, a vida continuou exatamente como era antes.
A Dona Zilda continua indo todo dia cedinho buscar o pão na padaria do Seu Alberto. As crianças continuam batendo papo atrás do muro da escola. A casa da sua família continua sendo a casa da sua família e o Boteco do Tonho continua servindo a sua generosa porção de torresmo para os senhores jogando dominó nas mesas de plástico na calçada.
Muitas das coisas que você achou que só aconteciam por que você estava lá, continuam acontecendo mesmo sem você.
Eu lembro exatamente quando senti isso pela primeira vez após voltar de uma temporada fora do país e, no caminho entre o aeroporto e minha casa, começar a perceber que tudo estava igual. Nada tinha mudado, por que eu tinha ficado um tempo longe, mesmo eu achando que certos lugares eram os meus lugares. O bar que eu ia com meus amigos, o cinema que eu ia com a namorada e os cachorros da vizinha latindo de manhãzinha só para me acordar.
Não importava se eu estava ali, a vida continuou.
A segunda vez que eu senti isso foi essa semana quando percebi que não importa quantas pessoas morram diariamente em uma pandemia, se a economia está crescendo ou não, se os restaurantes estão abertos ou fazendo só delivery.
A vida continua.
E pela primeira vez nesse um ano que estou preso em casa, eu entendi que talvez esse seja o maior problema que estamos passando. Pois ao mesmo tempo que tudo mudou, nada mudou.
O novo normal nunca veio, ainda não estamos melhores como todos os gurus nos prometeram, os boletos continuaram chegando, as crianças ainda têm de ir ter aula do jeito que for, tudo no mercado está mais caro e é preciso dar um jeito de comprar o feijão e o arroz que tá acabando. Como perceber se tudo mudou, se os problemas ainda são os mesmos?
A vida continua.
Duas mil pessoas podem estar morrendo por dia. É como se 10 aviões estivessem caindo todo dia em volta da gente, todo santo dia. Mas a gente segue andando e assobiando, apenas desviando dos destroços em chamas.
E a vida, não está nem aí, a vida continua.
A vida continuou quando caiu um meteoro que matou os dinossauros. A vida continuou quando Nero colocou fogo em Roma. A vida continuou depois que o nazismo parou de mandar pessoas para campos de concentração. A vida vai continuar depois que acharmos a cura - ou não - para a pandemia pela qual estamos passando.
A vida é praticamente uma brasileira e não desiste nunca.
Se você sentiu a sensação que eu falei no começo desse texto, você provavelmente sentiu algo que vem praticamente junto com a sensação de perceber que o mundo para onde você voltou continua igual, que é o fato de que tudo pode parecer igual, mas quem está diferente é você.
Você viajou, viu o mundo, sentiu sabores e cheiros novos, ouviu línguas e histórias que nunca sabia que existia. Você não é mais a mesma pessoa que foi embora, mesmo que a Dona Zilda, o Seu Alberto e as crianças atrás da escola acabem parecendo ser as mesmas pessoas, fazendo as mesmas coisas que elas faziam antes de você sair dali.
A gente pode achar que somos os mesmos agora, mas tudo isso que estamos passando está mudando a gente. Estamos perdendo nossas famílias, nossos amigos, nossos amores e até nossos inimigos. Os lugares que a gente gosta estão fechando. Nossos empregos estão indo embora e nossas geladeiras estão ficando vazias. A gente não tem como ficar inerte a tudo isso. A gente não tem como ficar inerte a todas as pessoas que estão escolhendo fazer de conta que nada está acontecendo e não estão se cuidando, e, assim, não estão cuidando das suas famílias e dos seus amigos.
A gente já está pagando um preço muito caro por tudo isso. Mas a conta ainda vai ficar cada vez mais cara e a gente vai ter de sair desse buraco junto. Essas semanas perdi amigos e pessoas próximas, que não vão nos ajudar nessa reconstrução do tudo e, só de pensar nisso, eu já fico diferente. Não tem como ser de outro jeito. Todo mundo já mudou. Mesmo que nada tenha mudado e que nossas cidades e cultura ainda continuem as mesmas. A gente mudou e, por isso, nada que a gente viver daqui para frente vai ser igual.
No fim, não importa o que a gente acha do vírus, da máscara, da vacina ou do governo.
O que importa é que a vida vai continuar, e hoje mais do que nunca, é uma escolha nossa fazer parte dela ou não.
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