Topo

M.M. Izidoro

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Aquele frango do mercado é parente da Galinha Pintadinha

Processamento de carne de frango em Itatinga (SP) - Paulo Whitaker
Processamento de carne de frango em Itatinga (SP) Imagem: Paulo Whitaker

M.M. Izidoro

08/05/2021 06h00

Na época em que a gente podia aglomerar, eu sempre preferi ser o tio que brincava com as crianças no encontro dos amigos.

Tem uma coisa ali em como crianças veem o mundo que me fascina demais e fico triste que a gente perca um pouco disso quando a gente cresce.

Em um desses encontros, eu estava cantando músicas da Galinha Pintadinha com um grupo delas quando algumas mães chegaram com pratos com pedaços de frangos quentinhos recém tirados da churrasqueira. Eu, sem noção que sou, naturalmente que fiz a brincadeira de "minha deusa, vamos comer a Galinha Pintadinha!". Antes de acabar de falar isso, eu já tinha me tocado na cagada que eu tinha falado e estava só esperando o olhar destruidor que uma mãe pode te dar quando você faz algo com o filho dela de que ela não gosta, mas antes que eu pudesse olhar para as minhas amigas ali assoprando os pedaços de frango, uma criança respondeu algo sobre o qual ainda penso muito, "Isso não é a Galinha Pintadinha, seu bobão. Isso é frango. A Galinha vive na fazenda e o frango nasce na geladeira do mercado."

A partir desse papo com essa criança - que não devia ter mais de cinco anos - eu comecei a perceber que não era só ela que não conectava o frango no mercado com a Galinha Pintadinha. Todo mundo que eu conhecia estava fazendo alguma variação dessa desconexão.

O meu pai falou que morria de nojo de cadáveres, enquanto manipulava um pedaço de um para assar no churrasco (e ficou puto demais quando eu apontei isso para ele. Mas o ponto da carne ainda estava ótimo, pai!)

Um amigo estava puto que não achava alguma fruta específica quando claramente não era época dela.

Uma amiga estava caçando avocado - aquele abacatinho importado caríssimo - para tirar foto de um sanduíche para postar no Instagram.

E depois de muitas conversas como essa, eu percebi que a gente não tem ideia do por que e o que a gente come.

A alimentação, como quase todas as outras coisas, ficou refém do consumo desenfreado. É sempre muito. É sempre urgente. É quase sempre ruim para gente e para o planeta.

O fato de que hoje a gente vive na maior época de abundância que já tivemos como humanos, faz a gente esquecer a origem das coisas, pois se a gente pensar muito, vamos ver que não faz sentido algum o que a gente está fazendo.

A gente abre a torneira e sai água. A gente aperta o interruptor e a luz acende. A gente aperta a descarga e o coco vai embora. A gente vai no mercado e tem o que a gente quiser comer.

Essa facilidade faz tudo ser quase mágico. As coisas simplesmente aparecem e desaparecem, e a gente não tem ideia de onde elas vieram e para onde elas vão. Você junta isso com a facilidade das redes sociais e conteúdos de entretenimento que nos conectam com o mundo inteiro e nos dão vontade de consumir coisas que não eram para a gente ter acesso pelo simples fato de que na nossa terra não dá para plantar, mas o capitalismo acha um jeito.

E eu to falando tudo isso por que se a gente não se preocupa com a nossa alimentação, com o combustível que a gente põe para dentro para funcionar no dia a dia, como a gente quer ter força para fazer qualquer outra coisa?

Se a gente parar para pensar - o que é muito raro, por que temos de votar para eliminar alguém no BBB ou fazer uma dancinha no TikTok - a nossa obrigação como animais humanos é basicamente sobreviver. Respirar, tomar água e comer.

E é incrível como a gente está fazendo essas coisas simples tão mal.

Existe um conceito chamado soberania alimentar, em que a gente tem acesso a e consome as coisas mais frescas e naturais de cada lugar na época certa. Pois ao fazer isso, a gente tem certeza que a natureza vai nos dar o melhor alimento que a gente pode ter para nossos corpos e sem machucar tanto a Terra.

Mas como a gente vai pensar nisso, se a gente esquece que um bife foi uma vaca, que avocado não dá no Brasil, que chocolate e café são produzidas com trabalho escravo, que as bananas estão entrando em extinção, que animais estão sofrendo genocídios para nos alimentar, que sementes estão sendo geneticamente modificadas para criar fast food mais rápido e que estamos desmatando a Amazônia para criar monoculturas de soja e animais para abate?

Óbvio que é pesado demais pensar nisso a cada refeição. Você trabalhou, você conquistou e você só quer pedir seu iFood top com uma coquinha gelada para relaxar, né? Deus me livre pensar nas pessoas que tão sofrendo horrores para gente comer nosso chocolatinho de todo dia aqui, né?

Mas talvez ser mais consciente com o que a gente põe para dentro - seja comida, seja informação, seja sentimento - acabe sendo o primeiro passo para a gente começar a quebrar esse ciclo de destruição que está se formando em volta da gente. É a gente perceber que tudo tem um ciclo de crescimento e morte. Que as melhores coisas para a gente talvez esteja nas panelas de nossas avós e não no prato do chef francês. Que com a melhor quantidade de combustível que você conseguir por para dentro, melhor serão suas ações durante o dia.

Eu não vou julgar se tal dieta é melhor que a outra agora. Cada um sabe da sua realidade e da sua cultura. Mas mais de um terço da comida produzida no mundo é jogada fora. Imagina se a gente conseguisse utilizar essa comida e não desperdiçar nada. Talvez não existisse mais fome. Imagina se a gente voltasse a se relacionar com nossa comida de maneira mais íntima, plantando uma pequena horta em casa ou tendo uma pequena criação de algum animal. É a gente alimentando algo que vai nos alimentar. É o ciclo se fazendo. É a vida prosperando em todos os seus lugares.

Tem muita gente com insegurança alimentar hoje por que a gente acha que comida é algo que a gente compra no mercado e não que a gente mesmo pode produzir. E talvez, se a gente mudar esse pensamento, todos nós podemos comer tudo do bom e do melhor sem desperdiçar nada e ter para todo mundo.

E isso pode começar com a gente ensinando nossos filhos que aquele frango do mercado é parente da Galinha Pintadinha.