Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O que é justiça para você?
Nesse exato momento estou assistindo a um dos jogos da Copa do Mundo do Qatar e vendo que praticamente todas as seleções ocidentais contam com atletas negros em seus elencos.
Eles correm para lá e para cá atrás da bola defendendo as cores de bandeiras que talvez nem ligam tanto assim para eles.
Essa imagem me faz lembrar dos jovens, também negros, que em dezembro de 2019 estavam em uma festa em Paraisópolis e saíram correndo de uma ação policial, com nove deles acabando sem suas vidas.
Acabei de lembrar das manifestações golpistas pós eleição, em que o nosso direito de ir e vir foi tirado por manifestantes majoritariamente brancos e de classe média, que insatisfeitos com o resultado do pleito, resolveram parar o pais que não podia parar quando 600 mil pessoas estavam morrendo por causa da covid.
Imagino se isso seria assim se a Luana Barbosa, o Amarildo de Souza ou o Beto Freitas - três pessoas pretas que foram assassinadas por policiais - achassem que deveriam fazer o mesmo em suas comunidades.
Ser preto em um país como o Brasil é quase sempre ter a sensação que você está sob a mira de algo mortal. Muitas vezes esse algo sendo manipulado com agentes do próprio Estado.
Isso aconteceu com 111 pessoas no massacre do Carandiru. Com outros na Favela Naval. Mais algumas na Favela do Borel.
Eu também ando pensando em tudo isso pois há dois anos estou dirigindo e escrevendo um podcast que estreou recentemente, chamado "Justiça em Preto e Branco".
Esse podcast foi criado a partir da pesquisa do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, comandado pelo Thiago Amparo e a Marta Machado.
Esse é um podcast de true crime à brasileira, em que quem atira é a polícia e quem morre somos nós, pretos.
Em cada episódio, narramos um desses casos que citei acima, tentado entender o caso socialmente e juridicamente para tentar dar uma ideia de se a justiça foi feita ou não.
Em quase todos os casos, fica muito claro quem cometeu os crimes e o que tem de ser feito para reparar essas mortes. Mas ao ouvir essas histórias, você verá que até um julgamento positivo em prol de uma família que perdeu um ente querido acaba virando algo que te deixa nervoso. Parece que a justiça nunca é feita por inteiro, sabe? Tem família que está esperando ser paga pelo governo há décadas. Tem assassino confesso que nem pena cumpriu.
E tem muitas pessoas que nunca mais vão abraçar e beijar suas famílias.
Algumas semanas atrás, escrevi uma coluna aqui falando que tive um ataque de ansiedade.
Esse ataque começou na gravação da narração desse podcast.
Os episódios são brilhantemente narrados pelo Christian Malheiros e a Andreza Delgado, as gravações foram muito intensas, pois ao dar vida as palavras que eu escrevi com o Caio César, o sentimento de dor, injustiça e revolta só aumentavam.
Até quando vamos ter de contar essas histórias? Até quando vou ter de entrevistar mães que perderam seus filhos? Filhos que perderam seus pais? Esposas que perderam seus parceiros?
Esse é um projeto que não deveria existir. Mas ele existe. E existe para que, no futuro, ninguém precise mais contar essas histórias que quase nunca tem final feliz.
Para mim, o caso que mais me toca é o da Luana Barbosa. Uma mulher lésbica do Espirito Santo que estava levando o filho de 14 anos para um curso pago com muita dificuldade pela família em uma tarde normal. Eles estavam numa moto e foram parados por alguns polícias que confundiram a Luana com um homem. Ela disse que era uma mulher e começou a discutir com o policial que não acreditava. Ela tirou a blusa e mostrou seus seios para ele e foi ai que ele disse uma das frases que eu mais pensei nesses últimos dois anos:
"Se você quer ser um homem preto, eu vou te tratar como um homem preto tem de ser tratado."
Luana apanhou da policia na frente do filho e morreu dois dias depois.
Enquanto eu choro aqui escrevendo essas palavras, eu olho para televisão e vejo atletas negros no pico da sua forma física, correndo para cá e para lá, sendo ovacionados por milhões de pessoas. E do fundo do meu coração, eu queria que um dia qualquer pessoa preta possa ter a sensação de correr livre por ai, sem a sensação de ter uma mira apontada para a sua cabeça o tempo todo.
Que possamos ser louvados, celebrados, amados e continuarmos vivos.
E que seja isso que queremos dizer da próxima vez que ouvirmos de alguém
"Se você quer ser um homem preto, eu vou te tratar como um homem preto tem de ser tratado."
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