Topo

Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quanto tempo dura uma manhã?

Cena da série Manhãs de Setembro protagonizada por Liniker - Divulgação
Cena da série Manhãs de Setembro protagonizada por Liniker Imagem: Divulgação

12/07/2021 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

"Você é muito bonita, pai". Essa frase foi dita por um menino em uma farmácia, olhando com admiração para uma mulher, trans, que é na verdade seu pai. Apesar de ser uma cena da série "Manhãs de Setembro", protagonizada pela cantora e atriz Liniker, carrega uma particularidade real ainda muito invisível na vida de pessoas trans: a parentalidade.

Na série, a personagem de Liniker protagoniza a descoberta do seu papel de pai biológico de uma criança, anos depois de sua transição de gênero, e sem dar mais spoilers - além de recomendar que todas as pessoas assistam à série! - me fez vir aqui escrever sobre os nossos papéis enquanto mães e pais.

Confesso que chorei praticamente a série inteira, pois me relacionei tanto com a história ali retratada, que eu não poderia deixar de falar sobre isso a partir de um paralelo com a minha própria vida.

Minha filha mais velha, que fez 8 anos esses dias, passou ao meu lado por questões que a maioria das pessoas não vê. Mas assim como a criança na farmácia, ela olhou pra mim com admiração, mesmo quando ela se referia a mim como "bonita".

Eu fui mãe dela enquanto ainda me identificava para a sociedade como uma mulher cisgênero. A notícia da minha maternidade foi muito difícil, não por ser mãe dela, mas porque ali recebia um "carimbo" da sociedade de que seria mulher pelo resto da minha vida — e eu já sabia que não era mulher desde criança.

Mas você já viu uma mãe homem? Pois é, eu também não. Então, vivi a maternidade dela, enquanto ela crescia, como a mulher que nomearam no meu nascimento.

Só que a vida tem as suas manhãs de setembro, e a minha não aconteceu numa farmácia, mas num estacionamento de pet shop. Após não aguentar mais viver quem eu não era, estacionei o carro e perguntei para o maior amor da minha vida, com um medo de perdê-la proporcionalmente tão grande a esse sentimento todo, se "a mãe parecia mais com menina ou com menino" — eu contei essa história nesse perfil que Ecoa fez sobre mim, se você quiser conhecer um pouco mais sobre mim. Ela, nos seus 5 anos de vida, e com o conhecimento que absorveu da sociedade com relação à performance e expressão de gênero, me disse que eu parecia mais com um menino. Não sei quantos segundos levou entre o momento de escutá-la e eu ter coragem para responder que sim, era isso mesmo: a mãe dela é um menino.

E de todas as piores reações que eu imaginei que ela poderia ter, o que ela me disse foi que eu deveria então ter um nome de menino. Para resolver essa questão, ela me questionou qual o nome "de menino" eu teria dado para ela e sugeriu que esse poderia ser o meu nome a partir dali. Ali nasceu o Noah, que escreve aqui para vocês hoje.

Porém, esse mesmo Noah não deixou de ser mãe, mesmo sendo um homem. E é aí que a parentalidade trans se torna mais uma questão na vida das pessoas trans. Se a personagem da Liniker diz ao filho para não chamá-la de pai na rua, o Noah da vida real diz para a filha não chamá-lo de mãe fora de casa.

E sabe como ela — a filha da vida real — reage? Me perguntando se eu tenho vergonha de ser mãe dela.

Você percebe o quão cruel é isso? É óbvio que eu não tenho vergonha nenhuma de ser mãe dela. Inclusive ela é o meu maior orgulho. Justo ela, a única pessoa que esteve ao meu lado em todos os momentos por que passei, sem deixar de me admirar, sem deixar de me amar, sem deixar de querer que eu fosse feliz, independente de quem eu fosse.

Mas assim como provavelmente antes desta série, ou desta coluna, você não tenha visto "uma mãe homem", ou "um pai mulher", o restante da sociedade também não. E o simples existir junto da minha filha em qualquer espaço público se tornou um problema. Ou nos que olham atravessado quando ela me chama de mãe, ou naqueles que se referem a mim como pai dela quando falam com ela sobre mim.

Assim como eu acreditei naquele carimbo que comentei antes, o restante da sociedade também entende assim.

Muitos podem estar se perguntando por qual motivo eu não assumo o papel de pai dela. E essa não é a pergunta que vocês deveriam se fazer. Vocês deveriam se perguntar por qual motivo que uma mãe não pode ser homem. Por qual motivo uma mãe homem precisa relembrar à filha para não chamá-lo de mãe, a cada vez que saímos na rua, mesmo sendo o que ele é?

E ela, a criança, "erra". Até porque imaginem quão difícil deve ser se conter ao me chamar. E nesses momentos minha filha me olha como se pedisse socorro, porque ela já entendeu tudo que pode acontecer comigo a partir dali.

Mas quem está errando não é ela, uma criança de 8 anos que é feliz como qualquer outra criança de propaganda de margarina. Quem está errando, são vocês. Vocês estão tirando de mim, a cada oportunidade, o meu lugar de mãe. E tirando da minha filha, a mãe que ela tem, da porta pra fora.

Quando falamos de parentalidade trans precisamos entender que ela não está condicionada a um gênero, assim como o papel desempenhado também não está. Dá para ser mãe sendo homem, como dá para ser pai sendo mulher. Assim como dá também, para ser mãe e pai, numa pessoa só, para filhos diferentes.

Essas crianças não têm nada de sofrido além daquilo que lhes é imposto pela sociedade normativa. Elas só querem o mesmo que todas as crianças querem de quem representa o papel de cuidador: amor. E amor não tem gênero.

E o que eu quero? Eu quero que todas as minhas manhãs sejam como as manhãs de setembro, e que a minha filha possa me dizer em qualquer lugar, sem medo: "mãe, você é muito bonito".