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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Uns se dizem 'workaholic'; outros têm medo da família passar fome

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Imagem: Thinkstock

18/07/2022 06h00

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Essa foi a frase que eu postei semana passada na rede social que eu mais utilizo, o LinkedIn. É óbvio que gera lá suas controvérsias pois aquela ainda é uma rede em que o perfil principal de visibilidade é esse, o "workaholic".

Mas aí o que aconteceu, que fugiu da rede social, foi que eu tive terapia no fim deste mesmo dia. E abrindo aqui um parênteses, já fazia quase um mês que eu não fazia a terapia que, na teoria, no meu planejamento e no meu ideal, aconteceria semanalmente.

Poxa, sabe aquele clique que dá? De manhã eu tava lá postando sobre esse excesso de trabalho como reflexo de desigualdade social, sem nem perceber que de noite eu estaria entendendo que pelo meu excesso de trabalho, eu já não tinha tempo nem para a terapia, nem para almoçar, nem para levar minha filha ao médico.

Só que aí eu fui mais fundo ainda, cheguei na segunda frase do título desta frase. Ainda neste mesmo dia, quando já em casa, "dentro da família", virava meia-noite e eu estava aqui, excessivamente trabalhando. A coincidência foi estar escrevendo esta coluna. Mas o fato é que eu, se não estivesse escrevendo ela, estaria dando conta de algum outro tanto de trabalho que tenho por fazer, e que às vezes não me traz prazer nenhum, diferentemente de quando escrevo aqui para vocês -- ainda que neste momento eu quisesse ter a opção de estar dormindo.

Porém, eu não tinha como deixar passar de hoje, pois é justamente sobre o hoje que vem a minha reflexão para você. Não para você "workaholic", mas para você que, assim como eu, tem medo que a família passe fome. Enquanto eu viro a madrugada, e com ela vira mais de 24 horas sem eu comer, literalmente, nada, fiquei me perguntando onde eu encaixava esta família que, pelo meu excesso de trabalho, há anos sempre teve o que comer.

Se eu não sou "workaholic", e sim tenho medo da minha família passar fome, onde ficam as pessoas destas famílias que são as que dormem no máximo 4 horas por noite com a barriga roncando, para que este barulho parta apenas de si? Onde fico eu, que aqui te escrevo, e talvez te encontre nesta mesma posição? Onde estamos nós senão de fora destas nossas próprias famílias?

É fácil problematizar o mercado de trabalho e a desigualdade social. Se você buscar minhas colunas anteriores, você vai ver o quanto. Mas e se a gente for falar sobre a desigualdade dentro do mesmo núcleo familiar?

Sabe o que a gente provavelmente vai encontrar (e com razão)? Aquele estereótipo da mulher (cis) que cuida dos filhos e da casa, enquanto ainda trabalha fora, e do homem (cis) que "ajuda" em casa quando dá tempo, pois está na correria entre ser "workaholic", ir pro futebol com os amigos uma vez na semana, e na academia todos os dias de manhã cedo.

Isso existe de fato, infelizmente. Mas é muito raso a gente parar por aí quando for falar sobre desigualdade no núcleo familiar sendo que existe uma pluralidade muito maior de existências, e de marcadores sociais que só afastam a gente do prato de comida que, só chegou lá, porque você abdicou da sua saúde, sem colocar na balança, se realmente tinha alguém nessa mesma balança com você.

A solidão a dois pode ser sentida de diferentes maneiras dentro de um relacionamento familiar afetivo. Mas repara aqui quando eu digo a palavra "afeto". Como que uma pessoa que está sozinha nesta balança consegue "ser afeto", ou principalmente, "entender afeto", quando para se chegar neste lugar de afetividade existe uma premissa de companheirismo?

E se é só a mesma barriga que ronca todos os dias, enquanto a do outro está sempre cheia, e, não coincidentemente, quem está com a barriga cheia também está com o sono em dia, e definitivamente não se encaixa nem em "workaholic", nem parece tão preocupado quanto você, com o que ela mesmo vai comer porque tem a certeza que você não vai deixar que falte?

Isso não é companheirismo, e dessa forma, entenda: você não faz parte desta tal afetividade. Quem sente afeto sobrecarregado de trabalho e de barriga vazia?

E que afeto é esse, que dizem sentir por você, quando você é deixado para trás madrugada à dentro, sozinho?

Se pergunte se você não está apenas vivendo para que "seu" núcleo familiar possa ir a uma boa escola, ter um trabalho de carteira assinada com 8 horas diárias de segunda à sexta, e uma despensa cheia para que tais barrigas não ronquem. Enquanto para você, essa realidade não chega.

E talvez o que mais me entristeça nessa "desigualdade núcleo familiar" seja a total inércia para que essa tal desigualdade seja diminuída. Me entristece o fato da outra pessoa não subir na balança com você. Me entristece que ela nem demonstra essa intencionalidade ou vontade.

Talvez, se em algum momento da vida eu pudesse ter sido essa pessoa, eu conseguisse dizer que entendo, porque eu consigo imaginar que deve ser muito confortável. Ok, pode haver um certo desconforto em ver o outro se lascando sozinho pra segurar tudo (ao menos prefiro crer que sim), mas ainda assim, esse desconforto não é maior que o conforto de não precisar se co-responsabilizar pelas barrigas cheias e as horas excessivas de trabalho.

Aí, como que a gente vai querer diminuir a desigualdade social do mundo, quando a gente não faz nada para diminuir a desigualdade que existe dentro de casa? E se entre esse núcleo familiar ainda existir um abismo de desigualdade de marcadores sociais, não seria essa "não-balança" também uma forma de preconceito, que beira a exploração, ao reforçar qual é o papel da pessoa não branca, senão àqueles de servidão?

E dentre tantas desigualdades por aí, eu acabei encontrando numa delas o sentimento de que não há solidão maior que "a solidão a dois". Uma solidão quando um não tem nem tempo, nem energia, para poder ser amado. Onde ele realmente nem saiba acessar o que é o amor, porque a vida não deixa. Como acessar o amor, quando tem tanta coisa que precisa ser feita, em tão pouco tempo para uma pessoa só, para garantir que não falte nada para toda uma família?

Então, nessa madrugada, nessa solidão a dois, refaço a frase da rede social para ser justo inclusive comigo mesmo: uns se dizem "workaholic", outros têm medo da família passar fome, e muitos negam o acesso ao amor, ao negligenciar quem está ao seu lado.

Independente de em que lugar desta sentença você se identifique, eu espero, aqui do auge da minha exaustão e da minha fome, que você repense se está dentro ou fora dessa balança. Bons sonhos.