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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A Copa do Mundo em que vestir a camisa do Brasil não te faz campeão

Neymar em ensaio fotográfico da seleção brasileira antes da Copa do Mundo do Qatar - Ryan Pierse - FIFA/FIFA via Getty Images
Neymar em ensaio fotográfico da seleção brasileira antes da Copa do Mundo do Qatar Imagem: Ryan Pierse - FIFA/FIFA via Getty Images

Colunista do UOL

22/11/2022 06h00

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Isso não tem nenhuma relação com a apropriação da camisa brasileira. Mas tem relação com apropriação.

Veja, a Copa do Mundo começou. O domingo parou para ver a abertura desse evento realizado em um país onde ser LGBTQIAPN+ é crime. Domingo, 20 de novembro. Data com tantos significados.

Dia da Consciência Negra, onde no Brasil, talvez no único dia do ano, a grande maioria reconhece que vivemos num país racista. A outra grande maioria compartilha nas suas redes o vídeo do Morgan Freeman falando de "Consciência Humana".

Também é o Dia Internacional da Memória Trans, uma data tão invisível quanto as próprias pessoas transgêneras no Brasil, mas que relembra as vidas trans tiradas e divulga o levantamento anual do "ranking" de assassinatos de pessoas trans no mundo todo.

Ah, pelo 14º ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em um levantamento que é feito há... 14 anos. Este "topo" sempre foi nosso.

Mas, voltemos à camisa da seleção brasileira. Afinal, não é hoje que "somos todos iguais"?!

Digamos que o Brasil seja campeão nesta copa. Você, mesmo se estiver com a camisa da seleção brasileira, não segura a taça de campeão do mundo. Você vibra, comemora, se faz parte da vitória. Mas não, você não segura a taça junto aos jogadores e equipe no momento da vitória.

Sabe por quê? Porque você é plateia. Você é audiência. Mesmo que você tenha torcido a favor da seleção.

Você não participou em nenhum momento na colaboração da conquista daquela taça. Você não estava em campo, você não estava disponível no banco, você não estava na equipe técnica, você não estava na equipe auxiliar.

Então, você não segura aquela taça pois por mais que você a desejasse, você sentava e aplaudia.

Quando eu disse que era sobre apropriação, eu explico: quando a vitória é conquistada, você diz "a taça é nossa".

Porém, onde você estava até este momento, e o que você contribuiu para que, de lá pra cá, essa taça tivesse sido conquistada?

Tivemos um momento histórico para o Brasil na semana passada. E um exemplo nítido sobre vitória e protagonismo.

Liniker foi a primeira pessoa trans brasileira a conquistar um Grammy. Aqui, eu falo sobre "vitória". Vitória de uma mulher trans que vem há anos construindo sua carreira com muito propósito e lidando com tantos obstáculos, que só quem é trans, no país que pelo 14º ano é o país que mais mata pessoas trans no mundo todo, sabe.

Vitória da Liniker, e de todas as pessoas que, assim como ela, seguram as consequências do caminho até aquela estatueta: pessoas trans.

Agora, eu falo sobre "protagonismo". Quem viu o seu discurso, com toda certeza se emocionou. Essa emoção fez com que muitos "aliados" comemorassem a vitória de Liniker em suas redes sociais, compartilhando o lindo vídeo do seu discurso.

Me pergunto eu, quantos destes escutaram o álbum premiado, ou quantos destes acompanharam a carreira da Liniker. Vou mais longe, quantos destes acompanham a vivência de uma pessoa trans no Brasil, que é o que a Liniker salienta, ao mencionar tão emocionada uma conquista da nossa gente.

E aqui, entenda que quando digo "aliado", falo de toda pessoa cisgênero brasileira.

Mas, agora eu chego na "apropriação". Sabe o que eu queria? A mesma visibilidade que PESSOAS CIS receberam com a notícia da conquista de UMA PESSOA TRANS.

Nos últimos dias, tivemos o assassinato de mais 2 pessoas trans no Brasil. Não vi as pessoas que comemoraram a vitória de uma pessoa trans, sequer comentando sobre as vidas trans recentemente tiradas. Quem dirá, agindo.

A visibilidade em cima de vidas trans se dá por conta da cisgeneridade. A cisgeneridade "controla" inclusive, quem se beneficia com as nossas vitórias, vitórias trans. E infelizmente, aqui, entram "os aliados" também.

Na hora de "brincar de aliado" se apropriando de uma pauta que não é de vocês, mas que conta uma boa história, vocês gostam. Eu gostaria de ver o "aliado de verdade", aquele que usa das nossas vitórias e conquistas, como uma oportunidade de nos colocar no campo para contar as histórias da maioria de nós, as histórias que acontecem antes de chegarmos a qualquer prêmio. Que conte, mas que não fique só no post de rede social.

Eu quero "um aliado" que consiga me listar aqui tudo que fez em prol da comunidade trans. Que liste as ações que proporcionaram que "uma Liniker" chegasse ao Grammy. Que me prove o que fez, durante os 365 dias do ano, para mudar a realidade da nossa maioria, para no dia 20 de novembro de 2023 não sermos pelo 15º ano consecutivo o país que mais assassina pessoas trans.

Este é o seu papel de aliado. Faça isso e desça de um palco que não é seu. Não é seu local uma visibilidade que não deve ser sua. Ceda a sua visibilidade para que nós possamos ter a chance de contar as nossas vitórias por nós mesmos.

DEIXEM QUE NÓS CONTEMOS NOSSAS HISTÓRIAS DE VITÓRIA E PROTAGONISMO!

O lugar de vocês, de aliados, não é esse falso lugar de "cis-salvador" que faz post pra ganhar like em cima das nossas vitórias. E não estou dizendo que você não pode torcer por nós e comemorar as nossas vitórias. Mas você só pode fazer isso se participou das ações necessárias para que nós pudéssemos ter chegado lá.

Não seja um falso aliado, só compartilhando das conquistas, que você sabe que faz, pois de alguma forma te beneficia, nem que seja por ego. Nem que seja porque você é cis e sabe que terá visibilidade. Nem que seja porque você é realmente bem-intencionado. Mas boa intenção não é "ação". E "ação" é que muda o cenário que vivemos.

Entenda que só vivemos este cenário por causa de vocês. Inclusive, de vocês, aliados. Pois em uma sociedade estruturalmente transfóbica, mesmo que você seja um aliado, se você é uma pessoa cisgênero, você se beneficia dessa estrutura e "tira vantagem" dela mesmo sem perceber.

Em uma sociedade transfóbica qualquer cisgênero se beneficia.

Poste sobre a vitória de Liniker quando tiver uma lista de ações que tentaram evitar as mortes de Gabe e Bruninha.

Portanto, não se engane achando que essa taça é sua. Não roube o protagonismo que não é seu. A taça só será sua quando você, mesmo que não estando em campo, esteja em algum lugar do processo que permitiu que quem estava em campo, pudesse vencer o jogo.