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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quase morrer não muda nada. Estar morrendo muda tudo

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

02/01/2023 06h00

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Há anos eu escuto da minha psicóloga que a forma que eu levo a vida "não é sustentável". Eu provavelmente concordei todas as vezes que ela me disse isso. Porém, entre concordar e achar uma maneira de mudar existia um abismo.

Viver uma vida "não sustentável" pra mim é exatamente este "respirar curtinho", quando a gente pega o máximo de ar que pode. Um pouquinho de ar que seja o suficiente para cutucar o pulmão, para garantir que no próximo inspirar, entre de novo mais um pouquinho.

Essa é a nossa "sustentabilidade". O que é completamente diferente de dizer que vivemos uma "vida sustentável". A diferença? Nós nos sustentamos vivos assim, mas isso não quer dizer que a nossa vida se sustente.

O triste é que dá pra viver por anos assim. Te digo isso pois nos meus atuais 36 anos de idade, não tenho nem ideia da última vez que respirei fundo de forma natural.

E sabe o que acontece quando eu faço isso forçadamente? Parece que eu vou desmaiar. Sim, eu passo mal. Como se meu corpo não fizesse parte da espécie humana, que possui o privilégio de respirar fundo sem nem precisar pensar.

E já que dá pra viver assim, a nossa carga mental continua dia após dia sendo ainda mais embarreirada por uma sociedade desigual, que faz questão de nos colocar cada vez mais distantes de uma inexistente linha de partida - ainda que a linha de chegada seja a mesma - com a finalidade de nos tirar todo o ar.

Você também pouparia o ar se essa fosse a sua realidade. Se você só notou agora a sua respiração, se entenda como aquela parcela da espécie humana "capaz" de respirar naturalmente.

Mas você sabe por que só o que sobra é o desespero, quando o que deveria sobrar era ar? Porque tem gente respirando fundo demais, o tempo inteiro, em um planeta onde o ar é escasso para outras pessoas.

Então se eu, e tantos outros, não estão respirando como você, não é por escolha. E sim porque a marginalização das nossas existências neste planeta que poderia muito bem comportar os 8 bilhões de pessoas enchendo os seus pulmões, não nos dá este direito.

Não escolhemos "respirar curtinho", assim como não escolhemos precisar pegar dez trabalhos simultâneos que tem de caber nas 24 horas do dia, nos 7 dias da semana, nos 30 dias do mês e nos 365 dias do ano.

Não, não é sustentável dormir 2 vezes por semana. Não é sustentável se alimentar dia não, dia seguinte também não. Mas muitas vezes é a única alternativa para a nossa sustentabilidade, ainda que com toda certeza, assim, a nossa vida não se sustente.

E o que estou dizendo aqui está longe de falar sobre "burnout". Está longe de falar sobre o privilégio de poder parar quando o pulmão não enche mais o suficiente.

Aqui, eu estou falando da Dona Irajá, que acorda às 4h da manhã todos os dias.

Eu falo das três horas que ela passa em dois transportes públicos lotados. Dos passos apressados para chegar até o primeiro local de trabalho do dia.

O primeiro onde ela passa por racismo e transfobia recreativos e pode no máximo dar um sorriso amarelo para tentar demonstrar que aquilo não a machuca.

Até porque a Dona Irajá, enquanto limpa os banheiros, não pode nem se trancar em um daquele cubículo para, na tentativa de engolir a ferida, respirar fundo.

Ela não pode "se dar ao luxo". E assim, segue o dia, entre respiros curtos em horas perdidas de um local de violência - ou ganha-pão - até outro, para chegar em casa tarde da noite, ou começo do dia, e dar conta de tudo que recai sobre as suas costas curvadas, cansadas, mas ainda capazes de sustentar aquela vida, que age assim há anos para sustentar outras.

E não estou desvalidando de forma alguma o burnout. Eu sei o quanto ele é nocivo para quem passa por ele, e para quem está perto também.

Para pessoas como a Dona Irajá, o burnout tem outro nome e é reforçado de uma forma romantizada.

Para a nossa sociedade, quando buscamos no dicionário o significado de "burnout da Dona Irajá", ao lado da definição de "transfobia" e "racismo", o que encontramos como definição é: "você é muito forte".

A gente não é forte. A gente não é sobre-humano. E ainda que acostumados a viver o burnout nossa existência toda, em algum momento o ar que já era curtinho, termina.

Quando ele termina ele leva embora junto todos os sonhos que a Dona Irajá correu tanto para um dia realizar. Ele leva junto todos os sonhos que eu contei para a minha psicóloga que, quando desse para respirar fundo, eu iria realizar.

Mas assim como é o ar para nós, por mais longo que seja o tempo, quando se trata dos nossos próprios sonhos, ele é curto demais.

E nesse longo-curto tempo de respiradas conservadas para poder realizar os sonhos de outras pessoas que amamos, ele também toma o nosso fôlego, até não dar mais tempo da gente respirar.

Não por tempo suficiente para realizar todos os sonhos que nos imaginamos conquistando, nas longas rotinas que nunca foram uma escolha, e sim uma necessidade.

Mas que neste brincar de imaginar, nos fazem sorrir solitários, porém esperançosos, enquanto tentamos nos distrair de todo o tempo que ainda temos de enfrentar para finalmente poder respirar fundo.

E eu suspiro ao afirmar que é uma pena que na nossa única forma de nos sustentarmos vivos, a nossa vida não se sustente.