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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Elis Regina faria o comercial da VW? Sem IA regulada isso não importa

Elis Regina, em 1967 - Acervo UH/Folhapress
Elis Regina, em 1967 Imagem: Acervo UH/Folhapress

06/07/2023 11h19

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A Volkswagen acertou um dos maiores gols da história. E quando falo em "gol", não estou falando sobre o icônico carro da marca. Estou falando do golaço de placa que com certeza muda o rumo do futuro da publicidade daqui pra frente. E deste golaço que a VW fez, o maior deles foi saber exatamente como fazer com que ninguém notasse tudo de errado ali.

Eles demonstram que não mudam o futuro da publicidade apenas com tecnologia. Eles demonstram a genialidade de saber o básico sobre marketing de consumo: conhecer o seu consumidor e o que o engaja. E aqui, eles sabiam muito bem usar um dos primeiros princípios da publicidade, que é atingir o sentimento de seu consumidor, causando emoção.

A VW sabia que ao tocar cada pessoa com essa campanha, desmontaria qualquer racionalização que poderia ser feita, dando então "passe livre" para que ninguém notasse todos os problemas de "uma ação tão linda".

A ação você já deve ter visto pois viralizou. Em comemoração aos 70 anos no Brasil, a VW colocou no ar um comercial "emocionante" onde as protagonistas são Maria Rita, e sua mãe, que faleceu em 1982, Elis Regina. Como? Usando Inteligência Artificial para substituir o rosto de atitudes de uma dublê, por um "avatar" da Elis Regina. Essa é uma tecnologia chamada de "deepfake".

Não, não é um episódio de Black Mirror - por mais que pareça. Em concordando com a Anitta, seria até melhor que essa última temporada.

A musica do comercial é simplesmente "Como nossos pais", de Belchior, mas um hino para a cantora Elis Regina em todas suas performances poderosas e carregando nessa potência o significado de uma letra tão importante para a época vivida.

Mas aqui você já está emocionado demais para perceber o problema disso tudo.

O primeiro deles é que Elis Regina foi uma pessoa que, através de seus posicionamentos sociais e sua arte, demonstrava, em plena época em que fez sucesso justamente com essa música, ser contra a ditadura militar em vigor, que além de tudo, silenciava a arte da qual ela fazia parte. E aqui vemos a voracidade em sua interpretação de "Como nossos pais". A música é uma crítica direta à ditadura militar e tudo que vinha ocorrendo contra muitas pessoas no Brasil, mas também à ela própria, Elis.

De forma muito engenhosa, a propaganda focou apenas em conectar com as estrofes que queriam que você entendesse, retirando as partes que deixavam mais explícita a crítica a tudo que a propaganda representa.

Então até que você soubesse a origem da letra e o posicionamento da Elis, você já estaria tomado pela emoção para conseguir racionalizar isso tudo. E aí você aplaude o golaço, aos prantos, como em final de mundial.

Você esquece do histórico de Elis Regina, que chegou a cantar essa música em um evento chamado "Show de Maio", ocorrido em 1979, que serviu para arrecadar dinheiro para apoio ao fundo de greve de funcionários do ABC, formado por quem? Metalúrgicos que reivindicavam direitos das empresas que os exploravam. Dentre estas empresas, a própria VW.

Entenda aqui a gravidade da questão: Elis Regina cantou, em carne e osso, essa música em específico, como uma crítica direta à VW.

Esse acontecimento é tão significativo que até o presidente Lula, que foi metalúrgico por muitos anos em sua vida, já havia postado antes deste alvoroço todo e por outro motivo, uma foto deste dia ao lado de Elis Regina (a verdadeira).

Se Elis fosse viva hoje, ela aceitaria fazer parte desta propaganda?

E é aqui que existe uma problemática muito grande sobre o uso de inteligência artificial não regulamentada. Não importa se ela aceitaria. Tudo é possível, e não há nenhuma regulamentação que nos proteja de termos uma versão nossa criada, após a nossa morte, que use a nossa imagem e distorça tudo que fomos e acreditamos em vida.

Imagine algo que você acredita fielmente. Agora, imagine que depois da sua morte, o seu rosto e a sua voz são usados para falar o exato oposto do que você acreditava, e que ainda tem muita gente lucrando com isso.

As oportunidades são infinitas. Através do deepfake e da inteligência artificial, é possível criar um avatar de qualquer pessoa, para absolutamente qualquer fim.

Aqui, a VW muda o futuro da publicidade, mas, perigosamente, muda também o passado. A companhia abre a porta para reescrever a história, embalados por quem teve sua imagem distorcida, mas ainda assim, levando milhões à emoção. O que no fim, é o que importa.

Pois em uma população que não escuta "cuidado meu bem, há perigo na esquina", fica muito difícil de reconhecer que esse tipo de tecnologia utilizada desta forma, é praticamente uma "falsidade ideológica virtual", como eu chamaria aqui.

E "minha dor é perceber", tantos anos depois dessa música encantar pelos motivos certos, e de parecer que a sociedade andava em direção a um novo, que sempre vem, melhor que o passado que Elis viveu, "que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos, como os nossos pais".

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL