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Peixes amazônicos mostram no corpo os efeitos das mudanças climáticas
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"Tudo está fora da época. As árvores estão florescendo fora da época, o solo já não é o mesmo, a quentura aumenta e, quando vem o seco, os peixes morrem. O pescador sente", conta Myrian, moradora da aldeia Filadélfia, em terras do povo Ticuna, na região do Alto Rio Solimões, perto de onde o Amazonas faz fronteira com Colômbia e Peru. "Quando vem a chuva, chove muito. Isso também impacta os agricultores e os pescadores. Hoje em dia, tem pescador que chega de mãos vazias. Pegam peixes tão pequenos que ficam tristes."
João Almeida Vasques, pai da Myrian, é pescador. Na língua ticuna, ele diz à filha que não consegue mais vender peixes para sustentar a família e não conhece mais a fartura que já teve um dia. "Hoje já não vejo mais peixes maiores, não tem mais peixe-boi, não tem mais pirarucu grande, tambaqui grande, não tem mais mapará grande. Nem jacaré encontramos mais. Isso impacta muito para nós", traduz Myrian.
Myrian Pereira Vasques é estudante de engenharia agronômica e bolsista do Projeto Climas, executado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Desde novembro de 2021, o projeto busca identificar as mudanças climáticas por meio da percepção das comunidades indígenas.
As alterações apontadas pelos indígenas vêm ao encontro dos dados evidenciados pela ciência. Pesquisa feita junto a especialistas concluiu que metade das espécies de peixes ameaçadas na Amazônia brasileira é sensível aos impactos das mudanças climáticas.
Outras pesquisas mostram que, além do número de peixes ter diminuído, algumas espécies já evidenciam as mudanças climáticas no corpo: diversas reduziram de tamanho e algumas fêmeas estão se reproduzindo mais cedo.
No igarapé, vencem os bons nadadores
"O leste da Amazônia, ali no Pará, onde está o maior efeito do Arco do Desmatamento, vai sofrer cada vez mais com eventos climáticos extremos, principalmente secas extremas", diz Jansen Zuanon, que há 40 anos pesquisa os peixes amazônicos.
"Já no oeste, na fronteira com Peru e Colômbia, a gente espera o contrário, o aumento desproporcional na quantidade de chuvas."
Além das mudanças climáticas afetarem a Amazônia de forma diversa em termos geográficos, os efeitos sobre os peixes também são diferentes de acordo com o seu habitat.
"A quantidade de corpos d'água é absurda. Parece, de fato, o sistema arterial de um organismo qualquer", diz Jansen sobre os igarapés, pequenos riachos que correm protegidos pela copa da floresta e eventualmente são contemplados por um pequeno foco de luz quando surge uma clareira.
"Para cada quilômetro quadrado de floresta, você tem de 2 a 4 quilômetros lineares de igarapés. O igarapé não é uma linha reta, ele serpenteia, ele é todo meândrico. Ele faz curvas muito apertadas. A gente pensa na Amazônia como uma planície; na realidade é uma planície enrugada".
Os igarapés ocupam 80% da área das bacias hidrográficas da Amazônia e têm a temperatura da água bastante estável, variando entre 23 e 25 graus centígrados. As mudanças climáticas associadas ao desmatamento devem causar o aumento da temperatura ambiente e o consequente aumento na variação da temperatura destas águas.
"Boa parte dos peixes de igarapé não vai conseguir lidar com isso em termos fisiológicos. Eles evoluíram num ambiente muito estável, então qualquer variação brusca afeta a biologia desses organismos, atrapalha a reprodução, atrapalha os padrões de movimentação e eles vão provavelmente sofrer bastante", avalia Jansen.
Pesquisa realizada na Amazônia central mostrou que o aumento de chuvas nas últimas décadas já tem afetado os peixes de igarapés.
Ao investigar espécies por 18 anos, o estudo constatou que peixes pequenos com nadadeiras grandes e formato de corpo fusiforme — extremidades mais estreitas que o centro — aumentaram em quantidade.
Estas características sugerem a seleção de bons nadadores com maior capacidade de fazer manobras para suportar o transbordamento mais frequente das águas.
Na várzea, as fêmeas procriam mais cedo
Já os peixes de várzea — aqueles que vivem nos grandes rios, com planícies de inundação que podem adentrar 100 quilômetros de floresta — estão mais acostumados à variação da temperatura das águas, podendo ficar bastante tempo em lagoas de água quente com pouco oxigênio.
"Os peixes da várzea estão muito mais adaptados a esses extremos de variação de temperatura e oxigênio do que os de igarapé", diz Jansen. "Isso não quer dizer que os peixes da várzea não sofram."
Pesquisa realizada no Lago Catalão, região de várzea no encontro dos Rios Amazonas e Negro, próxima a Manaus, baseou-se em dados do nível da água coletados ao longo de 113 anos e em dados da biologia dos peixes coletados por 19 anos. O estudo mostrou que as mudanças no regime das águas já afetam as 16 espécies de peixes de várzea mais comuns na Amazônia central.
As principais mudanças notadas foram a menor abundância de fêmeas adultas grandes, a redução do tamanho das fêmeas ao chegar na maturidade sexual e a diminuição de tamanho das fêmeas maduras.
"A gente viu que, com o passar do tempo, a quantidade de peixes diminuiu. E diminuiu o tamanho com que eles começam a se reproduzir. Eles estão se reproduzindo mais cedo e estão crescendo menos", diz Jansen.
"A tendência ao longo do tempo é reforçar esse padrão, ou seja, ter peixes cada vez menores. Porque é uma vantagem: você consegue sobreviver encurtando seu ciclo de vida. Para você ter sucesso, você tem que deixar descendentes. É lei da seleção natural".
Outro estudo realizado na mesma região, tendo como base dados da variação das águas nos últimos 65 anos, mostrou que secas severas como a que ocorreu em 2005 não são eventos passageiros, mas reverberam por anos, causando alterações no comportamento dos peixes.
"Se a gente tiver duas ou três secas em sequência ou duas ou três cheias muito grandes em sequência, a gente pode ter efeitos na comunidade de peixes e na pesca que podem se prolongar por muitos anos", aponta Jansen.
Percepção das comunidades indígenas
"Se antes eles conseguiam pescar na frente de casa, agora eles têm que se deslocar muito mais longe", conta Thatyla Farago, coordenadora do Projeto Climas, sobre os indígenas do Alto Solimões.
"Quando a gente conversa com os anciãos, eles falam que é difícil prever quando o rio está subindo ou baixando e isso afeta a pesca e o plantio. As espécies que antes eram pescadas não estão sendo mais encontradas ou estão em menor tamanho ou em menor abundância."
Além de verificar as mudanças climáticas através da percepção das comunidades indígenas do Alto Solimões, principalmente nos municípios de Benjamin Constant e Tabatinga, o Projeto Climas capacita mulheres indígenas para que elas mesmas articulem ações mitigadoras dos efeitos de mudanças climáticas.
Por serem dependentes da disponibilidade de recursos naturais, os indígenas são considerados um grupo bastante vulnerável às mudanças do clima — e as mulheres são especialmente afetadas por sua jornada múltipla de trabalho.
Tanto os indígenas da comunidade Ticuna da aldeia Filadélfia quanto os da comunidade Kokama de Santo Antônio percebem os peixes cada vez menores, mais distantes dos locais habituais de pesca e insuficientes para alimentação e venda.
Em resposta a um questionário, muitos mencionaram as águas dos rios, igarapés e lagos mais quentes do que antigamente, consideraram impossível prever as chuvas e perceberam igarapés secos, que antes não secavam.
"Para a região do Alto Solimões, os dados científicos sobre as mudanças climáticas são super escassos", diz Thatyla. "Como a gente não tem dados históricos, a gente se alia ao conhecimento tradicional, resgate e memória para tentar entender o que está acontecendo lá na região."
A pesca, que beneficia milhões de famílias ao fornecer alimento, renda e meio de subsistência, é um dos serviços prestados por peixes de água doce.
A contribuição dos peixes para o funcionamento do ecossistema, no entanto, é muito mais abrangente e em parte desconhecida, como mostra um artigo. Nos ambientes aquáticos, os peixes fazem parte da teia alimentar, reciclam nutrientes, ajudam a conservar as florestas por meio da dispersão de sementes, entre outras funções.
No Brasil, uma nova espécie de peixe de água doce é descoberta praticamente a cada três dias. "Em qualquer expedição que a gente faz, se for um pouco mais longe de um grande centro, a gente detecta espécies novas de peixe. Tem sido uma constante isso. A gente descreve espécies novas de peixes de água doce na taxa de mais ou menos 100 espécies novas por ano. É muito bicho novo", conclui Jansen.
(Por Sibélia Zanon)
Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.
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