Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
Venda de toneladas de sementes pode salvar o Brasil da devastação ambiental
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
A 230 km de Brasília, na Chapada dos Veadeiros (GO), representantes de redes de sementes de várias partes do país se reuniram por quase uma semana no início de junho.
Junto a organizações ambientais, pesquisadores e representantes de órgãos governamentais, eles participaram de discussões para a estruturação do Redário, uma nova articulação que busca fortalecer essas redes e atender às demandas do setor de restauração ecológica do país.
"Nesse encontro a gente tem indígenas, agricultores familiares, moradores urbanos, técnicos, parceiros, todo mundo junto. Dá um mosaico bonito e um sentimento de que o que a gente está fazendo vai dar certo e vai crescer", diz Milene Alves, membro do comitê diretivo da Rede de Sementes do Xingu e técnica do Redário.
Em 2022, 64 toneladas de sementes nativas foram comercializadas para este fim pelas mais de 20 redes que formam o Redário. Desse volume, a iniciativa apoiou diretamente a venda de cerca de 16 toneladas de mais de 200 espécies, semeadas em uma área de aproximadamente 500 hectares. A previsão é manter o mesmo patamar em 2023.
A coleta de sementes nativas feita por populações tradicionais, em áreas preservadas de diferentes biomas brasileiros, tem contribuído para uma restauração eficaz e mais inclusiva de áreas degradadas. É um esforço necessário para que o Brasil cumpra a promessa de recuperar 12 milhões de hectares de vegetação até 2030, conforme previsto em acordos internacionais.
Se antes o trabalho de coleta para a restauração dessas áreas ficava apenas na mão de empresas, hoje as redes - que se multiplicaram na última década e se organizam como cooperativas, associações ou até firmas - permitem que os habitantes dos territórios se beneficiem da atividade.
Eduardo Malta, especialista em restauração do Instituto Socioambiental (ISA) e uma das lideranças do Redário, defende a participação das comunidades na comercialização das sementes e no plantio. "São essas pessoas que tiveram todo o trabalho de conquistar os territórios e estão lá preservando. Eles têm a maior diversidade genética de espécies e todo o conhecimento sobre o ecossistema", diz.
'Trabalho de formiguinha'
Uma das redes que integram o Redário é a Rede de Coletores Geraizeiros, cooperativa do norte de Minas Gerais que foi criada em 2021 e hoje conta com 30 coletores em oito comunidades, distribuídas entre cinco municípios: Montezuma, Vargem Grande, Rio Pardo de Minas, Taiobeiras e Berizal.
Ali, os geraizeiros - população tradicional da região - coletam e plantam para recuperar a vegetação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Nascentes Geraizeiras, criada em 2014 para frear a devastação que está levando a água a faltar. É o resultado do monocultivo de eucalipto feito por grandes empresas que, por décadas, se sobrepôs à paisagem do Cerrado.
"A região era riquíssima de água e hoje está sendo abastecida com caminhão-pipa ou poço", diz Fabrícia Santarém Costa, coletora e vice-presidente da Rede de Coletores Geraizeiros. "Hoje a gente vê que essas atividades só fazem mal pra gente, porque a empresa [de eucalipto] foi embora e a gente está lá sofrendo as consequências."
Ela descreve a restauração da RDS como um "trabalho de formiguinha", mas que já tem surtido efeito sobre a situação da água nas comunidades. Além disso, a venda das sementes complementa a renda dos geraizeiros, permitindo que se mantenham em seus territórios.
Esse trabalho também tem ganhado força nos territórios indígenas. Na Terra Indígena Barra Velha, sul da Bahia, a Cooperativa de Florestamento e Reflorestamento da aldeia Pataxó de Boca da Mata (Cooplanjé) existe desde 2012 e realiza todas as etapas da coleta ao plantio, atuando no território e prestando serviço para terceiros.
Assim como os geraizeiros, os Pataxó começaram restaurando suas próprias áreas e passaram a comercializar as sementes. Segundo Alfredo Santana, liderança da TI Barra Velha, 280 hectares de Mata Atlântica já foram restaurados pelos Pataxó dentro da Terra Indígena e do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal.
"Temos uma restauração lá que tem quatro anos, uma agrofloresta, onde já estamos colhendo a própria semente que plantamos", diz Alfredo.
Como o trabalho vem dando certo, os indígenas de Barra Velha têm levado a prática da coleta e da restauração para outras comunidades e territórios da região, como os da Terra Indígena Comexatiba (Cahy-Pequi).
Um 'berçário' para as redes
De Nova Xavantina (MT), Milene Alves é mais uma jovem "cria" das redes de sementes. Ela se dedicou por 11 anos, desde a adolescência, à Rede de Sementes do Xingu, pioneira e a maior do país, que já restaurou 8 mil hectares em plantios com parceiros.
Agora, atua no Redário apoiando o crescimento de novas redes e esteve recentemente em Alta Floresta (MT) para acompanhar o trabalho da Rede de Sementes do Portal da Amazônia. "Pude levar para eles muita coisa do que eu aprendi", diz a técnica.
Milene vê muitas semelhanças entre os desafios dessa rede e os que a Rede de Sementes do Xingu enfrentou no passado. "Gosto de dizer que o Redário é um berçário. Muitas redes entram ainda pequenininhas para crescer, ficar fortes e caminhar com as próprias pernas", define.
A similaridade nas etapas de desenvolvimento das redes de semente Brasil afora foi um dos fatores que levaram à criação do Redário.
"A gente viu várias redes nascerem e morrerem ao longo desses 17 anos", diz Eduardo Malta, que participou da criação da Rede de Sementes do Xingu no início dos anos 2000. "Começamos a colecionar histórias e aprendizados, tanto das que deram certo quanto das que morreram. As trocas entre as redes adiantam muito o processo, elas deixam de cometer vários erros".
Muvuca pelo clima
A iniciativa do Redário também pretende incidir sobre as políticas públicas e normas do setor de restauração para disseminar a muvuca, nome dado pelas redes à técnica de semear diretamente o solo, sem precisar cultivar mudas em viveiros.
Experiências das redes e estudos técnicos demonstram que a muvuca cobre a área mais rapidamente e com mais árvores por hectare, imitando melhor o ecossistema original. Com isso, exige menos manutenção, o que diminui o custo. Através das redes, a muvuca ainda distribui renda para a população local e fomenta organizações comunitárias.
"A muvuca tem um potencial muito grande de ser usada [na restauração], dependendo do que se quer atingir e da característica das áreas. Ela tem que estar no leque de opções pra gente conseguir cumprir as metas que estão postas", diz a analista do Ministério do Meio Ambiente Isis Freitas. Ela integra atualmente a coordenação de recuperação de áreas degradadas do departamento de florestas na Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais.
O Brasil formalizou em 2017 o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), com o objetivo de viabilizar o compromisso internacional de restaurar até o fim da década 12 milhões de hectares, implementar 5 milhões de hectares de sistemas agrícolas integrados (de lavoura, pecuária e florestas) e recuperar 5 milhões de hectares de pastagens degradadas. Em conjunto, é uma área quase equivalente ao estado de São Paulo.
Além dos benefícios sociais e econômicos, da manutenção dos recursos hídricos, da recuperação do solo e da biodiversidade que a restauração promove, ela ainda é importante para sequestrar carbono da atmosfera e mitigar as mudanças climáticas. O desmatamento tem sido a principal causa do aumento das emissões no país.
A meta de restauração foi reiterada este ano pela ministra do meio ambiente Marina Silva e, segundo Freitas, o ministério quer colocar a Comissão-Executiva para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa (Conaveg) para funcionar novamente ainda no segundo semestre de 2023. A extinção dos conselhos participativos, decretada pelo governo Bolsonaro em 2019, desarticulou a comissão e a execução do Planaveg.
O secretário-executivo do Instituto Socioambiental, Rodrigo Junqueira, aposta no Redário como uma estratégia para potencializar organizações que têm tido impacto positivo na restauração e fazer com que ela ganhe tração no país. "A gente não tem mais muito tempo. Se não conseguirmos avançar nisso nessa década, não sei o que será".
(Por Juliana Domingos de Lima)
Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.
*
Ainda por aqui? Assista a OESTE, a nova série em vídeo de UOL Ecoa.
Siga Ecoa nas redes sociais e conheça mais histórias que inspiram e transformam o mundo
https://www.instagram.com/ecoa_uol/
https://twitter.com/ecoa_uol
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.