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Reportagem

Incertezas ofuscam retorno da 'extinta' ararinha-azul

- A ararinha-azul, um dos psitacídeos mais ameaçados do mundo, desapareceu da natureza na virada do milênio devido ao tŕafico de animais e à degradação de habitat da Caatinga.

- Em 2022, um programa de reintrodução finalmente liberou o primeiro grupo de 20 ararinhas-azuis criadas em cativeiro de volta à natureza, alcançando ótimos resultados, incluindo os primeiros nascimentos de filhotes selvagens em décadas.

- Um dos maiores especialistas em conservação de papagaios, que atua como consultor do projeto, diz que esta foi "a reintrodução mais cuidadosamente planejada, a mais cuidadosamente executada e a mais bem-sucedida de qualquer psitacídeo que já vi em qualquer lugar".

- Em junho de 2024, no entanto, o acordo de cooperação entre o governo brasileiro e o criadouro alemão que abriga a maioria das ararinhas-azuis do mundo terminou sem renovação, lançando dúvidas sobre o futuro do projeto.

No dia 24 de maio deste ano, Ugo Vercillo acordou com uma notícia incrível: dois filhotes de arara, nascidos na natureza no município de Curaçá, no estado da Bahia, alçaram voo pela primeira vez.

Não eram araras quaisquer; eram ararinhas-azuis (Cyanopsitta spixii), uma das espécies de psitacídeo — família de aves que inclui araras, papagaios e periquitos — mais ameaçadas do mundo, com seus poucos indivíduos remanescentes confinados em cativeiro ao redor do mundo. Ou pelo menos este era o caso, até 2022. Agora, 11 desses pássaros estão voando livres novamente na Caatinga baiana e chocando uma nova geração de araras selvagens; testemunho de um esforço intenso de conservação que alguns consideram — pelo menos no que diz respeito a psitacídeos — o mais bem-sucedido até agora.

Vercillo, diretor técnico da Blue Sky Caatinga, organização de conservação focada na restauração dos ecossistemas do semiárido e envolvida na reintrodução da ararinha-azul, diz que os jovens pássaros que deixaram o ninho em maio não foram os primeiros filhotes selvagens nascidos no programa. A primeira ninhada, uma dupla nascida em 2023, morreu antes de poder voar. Então, quando Vercillo e outros conservacionistas descobriram uma nova ninhada no início deste ano, eles se determinaram a agir.

"Tivemos que fazer uma intervenção", lembra Vercillo. "Eram três filhotes. A gente retirou um dos filhotes porque ele já estava mais fraquinho, o que é natural porque normalmente [as ararinhas] põem três ovos, e dos três ovos só um sobrevive. Então o menor a gente tirou pra fazer o cuidado dele. Mas os dois que ficaram lá estão fortes e voando. Hoje de manhã eu acordei com a foto dos filhotinhos já em cima de uma catingueira, brincando lá com a mãe e sendo alimentados por ela."

A história de como a ararinha-azul está abandonando o status de "extinta na natureza" para voar novamente nos céus da Caatinga é deveras turbulenta. E mesmo sua reintrodução bem-sucedida não acalmou a tempestade; na mesma semana em que Vercillo recebeu notícias sobre os filhotes voando, o elo administrativo que mantinha o projeto de reintrodução coeso foi rompido, ameaçando o futuro deste programa promissor.

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Uma dupla de jovens ararinhas-azuis, no galho de baixo, com um dos pais. As duas foram as primeiras ararinhas nascidas na natureza a voar sobre a Caatinga em décadas. Seu primeiro voo registrado, em maio de 2024, coincidiu com o anúncio de que o ICMBio não renovaria um acordo de cooperação com a ACTP, o criadouro alemão que forneceu as aves para soltura
Uma dupla de jovens ararinhas-azuis, no galho de baixo, com um dos pais. As duas foram as primeiras ararinhas nascidas na natureza a voar sobre a Caatinga em décadas. Seu primeiro voo registrado, em maio de 2024, coincidiu com o anúncio de que o ICMBio não renovaria um acordo de cooperação com a ACTP, o criadouro alemão que forneceu as aves para soltura Imagem: Foto cedida pela Blue Sky Caatinga

Uma história turbulenta

Apesar de seu poder como um símbolo nacional de conservação no país mais biodiverso do planeta, ararinhas-azuis selvagens coexistiram muito brevemente com esforços de conservação para salvá-las. Ainda que os povos originais da Caatinga provavelmente já as conhecessem há muito tempo, a espécie só foi descrita pela ciência em 1832, a partir de um espécime coletado em 1819 pelo biólogo alemão Johann Baptist Ritter von Spix. Mas ninguém tinha certeza de onde a espécie ocorria até sua redescoberta no final dos anos 1980 e, àquela altura, apenas três indivíduos conhecidos sobreviviam na natureza, no município baiano de Curaçá.

Em 1990, esse número havia diminuído para um único macho, que encontrou companhia ao lado de uma fêmea de outra espécie de psitacídeo, a maracanã (Primolius maracana). Neste mesmo ano, conservacionistas alertaram que a ararinha-azul estava "efetivamente extinta na natureza". O último pássaro selvagem morreu em 2000, mas o status de extinção da espécie só foi formalizado em 2019 pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a autoridade global de conservação da vida selvagem. Aos olhos da ciência contemporânea, ararinhas-azuis sempre estiveram à beira do desaparecimento.

Esforços de conservação estão em vigor desde os anos 1990 para tentar salvar a espécie, mas tiveram sua eficiência limitada pela falta de recursos e de conhecimento básico sobre o comportamento e ecologia das araras. No fim, sua extinção foi impelida pela degradação de habitat, causada principalmente pelas fazendas e pastos que se expandiram pela Caatinga, e pelo tráfico de animais, que ganhou força nas décadas de 1960 e 1970.

No entanto, foram aves criadas em cativeiro que eventualmente fomentaram o renascimento da espécie. O maior plantel de ararinhas-azuis em cativeiro está hoje na Alemanha, na Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP). Em 2020, como parte de um acordo com o governo brasileiro, a ACTP enviou 52 aves de volta ao seu país de origem para o programa de reintrodução. O que se seguiu foi, de acordo com várias fontes, um sucesso surpreendente — mas cujo futuro se tornaria incerto devido a uma série de controvérsias entre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a instituição alemã que trabalhava ao seu lado.

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Ararinhas-azuis em um recinto no município de Curaçá, no norte da Bahia, onde são preparadas para a vida na natureza antes da soltura
Ararinhas-azuis em um recinto no município de Curaçá, no norte da Bahia, onde são preparadas para a vida na natureza antes da soltura Imagem: Foto cedida por Cromwell Purchase/ACTP

'A mais bem-sucedida reintrodução de psitacídeo'

Cromwell Purchase é o coordenador científico e de projetos de campo da ACTP, tendo atuado anteriormente como diretor de pesquisa na Al Wabra Wildlife Preservation no Catar. Esta segunda instituição já abrigou, no passado, a maioria das ararinhas-azuis do mundo. Mas segundo Purchase, em 2014, após a morte de seu fundador, "a melhor opção — e de fato a única opção — que garantiu o projeto de soltura [em Curaçá] foi enviar todas as aves para a ACTP na Alemanha."

O principal parceiro da ACTP no Brasil foi o ICMBio. Em 2019, no mesmo ano em que a espécie foi declarada extinta na natureza pela IUCN, o ICMBio fez um acordo de cooperação técnica com a ACTP para a reintrodução da ararinha-azul. O acordo formalizava as responsabilidades de cada instituição e seria válido por cinco anos, até junho de 2024, tendo que ser renovado após este período. De acordo com suas diretrizes, o ICMBio seria responsável, dentre outras coisas, pelo apoio técnico no monitoramento das aves e pelo apoio burocrático ao projeto de forma geral, enquanto que a ACTP construiria e gerenciaria instalações para criar, treinar e soltar as aves dentro da área de ocorrência histórica da espécie. Em 2020, a ACTP transferiu 52 araras da Alemanha para as instalações em Curaçá; em 2022, décadas após desaparecerem da natureza, 20 ararinhas-azuis foram finalmente soltas na Caatinga.

"O projeto tem sido incrivelmente bem-sucedido, além de qualquer coisa que poderíamos ter sonhado", diz Purchase. "Tínhamos uma lista de desejos e todos foram atendidos."

Essa também é a avaliação de Thomas White, biólogo do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA, e coautor, junto com Purchase, Vercillo e outros, de um estudo publicado em janeiro na revista Diversity descrevendo os resultados do primeiro ano de reintrodução. "A reintrodução da ararinha-azul foi a mais cuidadosamente planejada, a mais cuidadosamente executada e a mais bem-sucedida reintrodução de qualquer psitacídeo que já vi em qualquer lugar", diz White.

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E ele já viu algumas. White foi uma das mentes por trás do Projeto de Recuperação do Papagaio-de-Porto-Rico, uma iniciativa que aumentou com sucesso o número de indivíduos selvagens desta espécie (Amazona vittata) de 13 para cerca de 250 (e mais de 450 em cativeiro). Ele também trabalhou na conservação de espécies de psitacídeo nas Bahamas, na República Dominicana, na Nicarágua, no Chile e no Brasil, e foi convidado para ser conselheiro na reintrodução da ararinha-azul em 2012.

Ararinhas-azuis em um recinto construído especialmente para a espécie no Zoológico de São Paulo. O zoológico atualmente abriga 27 aves, com uma capacidade máxima de 44. Mas este número não seria suficiente para abastecer a meta de reintroduzir 20 aves por ano
Ararinhas-azuis em um recinto construído especialmente para a espécie no Zoológico de São Paulo. O zoológico atualmente abriga 27 aves, com uma capacidade máxima de 44. Mas este número não seria suficiente para abastecer a meta de reintroduzir 20 aves por ano Imagem: Foto cedida pelo Zoológico de São Paulo

Segundo White, este projeto foi especial. Antes de soltar as aves, a equipe as colocou em um cercado de treinamento e soltura para que pudessem desenvolver adequadamente suas habilidades sociais, de voo e de alimentação. Os pesquisadores selecionaram araras para soltura com base em sua genética e idade (de 3 a 7 anos), visando maximizar a diversidade genética e evitar comportamentos mal-adaptativos adquiridos em anos demais passados em cativeiro. E, mesmo depois de toda essa preparação cuidadosa, as araras não foram devolvidas à natureza sozinhas.

"A reintrodução da ararinha-azul é a primeira reintrodução de papagaios que usou o conceito de espécies substitutas, e o que é chamado de conceito de bando de espécies mistas, para maximizar a probabilidade de sucesso", diz White.

Isso significa que os pesquisadores soltaram o primeiro grupo de 20 ararinhas-azuis junto com maracanãs — a mesma espécie que formou um casal com o último macho selvagem de ararinha nos anos 1990 — para que as aves formassem grupos unificados. Ao contrário de suas primas criadas em cativeiro, as maracanãs foram tiradas da natureza com o propósito específico de ensinar as ararinhas-azuis a se comportarem como papagaios livres. De acordo com Vercillo, observando as aves mais experientes, as ararinhas-azuis aprenderiam como encontrar comida e evitar predadores.

Tudo indica que as ararinhas-azuis foram, de fato, boas aprendizes. No final do primeiro ano de reintrodução, em junho de 2023, a população reintroduzida teve uma taxa de sobrevivência cumulativa — que leva em conta o destino incerto de alguns indivíduos — de 58,3%. Pode não parecer muito, mas com base em outras reintroduções de psitacídeo, os pesquisadores estavam prontos para considerar qualquer coisa acima de 30% um sucesso.

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As aves também mostraram boa coesão, com 17 das 20 araras permanecendo juntas como um grupo. Mas, talvez mais importante, as aves soltas formaram pelo menos seis casais, e um deles se reproduziu com sucesso em seu primeiro ano na natureza, um sinal de que o projeto estava no caminho certo. "Tínhamos quase certeza de que teríamos boa sobrevivência, boa coesão de bando e boa interação entre as aves, mas ficamos surpresos por elas começarem a se reproduzir tão cedo", diz White.

Ararinha-azul no Zoológico de São Paulo. O programa de reintrodução tem sido um sucesso, mas conflitos institucionais ameaçam interromper futuras solturas
Ararinha-azul no Zoológico de São Paulo. O programa de reintrodução tem sido um sucesso, mas conflitos institucionais ameaçam interromper futuras solturas Imagem: Foto cedida pelo Zoológico de São Paulo

Nuvens escuras no horizonte

Mas o futuro da ararinha-azul ainda está longe de estar garantido. Vercillo liderou um estudo publicado em 2023 na revista Bird Conservation International, apresentando uma análise de viabilidade populacional para a espécie — um modelo matemático usado para avaliar a probabilidade de uma população se extinguir mediante diferentes cenários ao longo de um período de tempo.

"Com o estudo que a gente fez, a gente estima que, para a população ficar estável, e não correr risco de extinção nos próximos cem anos, ela precisaria crescer para cerca de 700 ou 800 animais", diz Vercillo ao Mongabay.

O plano era simples: continuar reintroduzindo 20 ararinhas-azuis na Caatinga todos os anos pelos próximos 20 anos, para que esse limiar relativamente seguro pudesse eventualmente ser alcançado. O objetivo exigiria cuidado e monitoramento constante das aves, além de investimentos contínuos em suas instalações de reprodução e treinamento. O estudo da Diversity reforça esse ponto, observando que "a importância da suplementação populacional regular e do apoio contínuo a essa nascente população selvagem não pode ser subestimada".

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Foi, portanto, um choque para muitos dos envolvidos no programa de reintrodução quando o ICMBio anunciou, em maio de 2024, que não renovaria o acordo de cooperação com a ACTP. Desde então, um conflito de narrativas emergiu entre as duas instituições, trazendo incertezas sobre o futuro da reintrodução de uma das espécies de psitacídeo mais raras e ameaçadas do planeta.

Na segunda parte desta história, a Mongabay analisa a turbulência administrativa que levou ao fim do acordo, o que isso significa para os futuros esforços de reintrodução da ararinha-azul, além da possibilidade, levantada por Purchase, de que essa situação possa levar "à segunda extinção da espécie na natureza".

Ararinhas-azuis no dossel das árvores da Caatinga na zona rural do município de Curaçá, local do retorno da espécie à natureza décadas após seu desaparecimento
Ararinhas-azuis no dossel das árvores da Caatinga na zona rural do município de Curaçá, local do retorno da espécie à natureza décadas após seu desaparecimento Imagem: Foto cedida por Cromwell Purchase/ACTP

Por Bernardo Araújo

* Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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