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REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Aprender com crianças, um caminho para debater políticas de alfabetização

Raquel Franzim, coordenadora de educação do Instituto Alana - Divulgação
Raquel Franzim, coordenadora de educação do Instituto Alana Imagem: Divulgação

Silvia Pereira de Carvalho e Raquel Franzim*

Do Instituto Avisa Lá e Instituto Alana

12/10/2019 07h00

Hoje, quando a discussão sobre quando e como alfabetizar inflama paixões e tem sido mais um tema para dividir o país, vale a pena prestar atenção em como os pequenos se aproximam de um jeito ativo e singular da cultura escrita. Quem está próximo de crianças de 4 a 6 anos se surpreende e se encanta com a maneira como elas vão construindo conhecimento, se apropriando das mais diferentes linguagens e se expressando de maneira inteligente e quase sempre poética.

No Fla x Flu dos problemas de alfabetização no Brasil, convidamos vocês, leitores, a colocar no centro do debate a relação que a criança estabelece com a cultura escrita. Para tanto, é necessário reconhecê-las ativas e capazes de se apropriar de um sistema tão complexo como o da escrita por meio de suas tentativas e hipóteses.

Silvia Pereira de Carvalho, fundadora e coordenadora do Instituto Avisa Lá - Divulgação - Divulgação
Silvia Pereira de Carvalho, fundadora e coordenadora do Instituto Avisa Lá
Imagem: Divulgação
Por mais de 19 anos, a Revista Avisa Lá promoveu um espaço para educadores de redes públicas e privadas de todo o Brasil narrarem suas práticas e aprenderem a partir delas. Dentre os muitos depoimentos e reflexões publicados, destacamos alguns que expressam a sensível relação que pode ser construída entre crianças e o universo escrito, dentro e fora da escola. É isso o que professoras e famílias contam nos relatos abaixo.

Maurício, pai de Joana, três anos, observou com interesse a aproximação da filha com a cultura escrita. Nos conta que esse vínculo começa com a curiosidade sobre a escrita dos nomes: o dela, dos colegas e das pessoas queridas. A pequena em casa ensaia combinações a partir das letras que a identificam: JONAA, JAAON, JONAA e finalmente JOANA. Observa que Joana reconhece letras e já sabe que o M é do papai Maurício, mas também das amigas Mariana e Melina. Quanta coisa já sabe! Ele relata ainda sobre o desejo e a alegria de se comunicar pela escrita: "Um dia desses, ela viu um papel qualquer todo desenhado por algum adulto com personagens e cenas da história dos três porquinhos. Num dado local do papel escreveu P-O-R-Q-U-I-N-H-O".

Ao terminar, deixou o papel sobre a mesa, tomou uma pequena distância e admirou sua obra, orgulhosa. Tomada de entusiasmo, encheu o peito de ar e disse: "Olha, escrevi lobo!". O pai sorriu feliz, pois, apesar de reconhecer o equívoco, se alegra com as relações que Joana pode estabelecer a partir da leitura que escuta de contos tradicionais. O simples fato de ela se arriscar a escrever a partir de sua lógica indica que ela não está submetida a exercícios preparatórios, mecânicos, repetitivos e sem sentido.

Em outro relato, a professora Marita elenca a necessidade, interesse e aplicação dos pequenos em uma escola em Minas Gerais para usar as palavras e frases na comunicação com o mundo adulto. Mayana, 5 anos, vai ao jardim, recolhe uma rosa e, com cuidado, a coloca em um vaso, pega um papel e escreve quase um poema: "Roza, Xeroza, Gostoza, Vose vai creze demaiz, daí voze: vai ficar cada veiz maiz bonita". Já a Kalina, de 3 anos, faz o desenho de uma pessoa e, ao lado, "escreve" imitando uma escrita cursiva. Com propriedade, diz "fiz desenho e escrita". Betina, com 4 anos, usa o mesmo tipo de "escrita" para finalizar uma folha começada pela sua mãe, aluna universitária que provavelmente lhe deu o papel para que se distraísse. A menina levou para escola a sua "obra" e orgulhosamente disse para a professora: "A minha mãe começou e eu terminei".

Mas é na produção de Vitor, 5 anos, que toda a vontade de se comunicar pela escrita fica evidente. Louco por futebol, lista em dado momento palavras que pertencem a esse campo semântico e mais para frente escreve um bilhete para seu ídolo Pelé: "Pele eu goto di você e qero qe você vein aqi ein visosa para mi esina a goga futibol. Vitor". Apesar dos erros ortográficos, conseguimos entender perfeitamente o que ele deseja. Sim, mesmo muito pequeno ele aprendeu que escrever é um ato de comunicação!

O que se conclui? É possível observar a partir dessas cenas que as crianças são "autorizadas" em casa ou na escola a escrever segundo suas hipóteses como a participar de situações sociais de escrita. Lhes é garantido o direito de ouvir e ter acesso às histórias, a interagir com outras crianças e adultos a partir de textos reais, repletos de significado. De ser reconhecida em seus saberes e conviver em contextos educativos que partam deles. Isto é, de construir na educação infantil uma relação ativa, curiosa e significativa com a cultura escrita.

Achar que, porque são pequenas, começamos primeiro com o ensino das vogais, depois sílabas simples e sons, mais tarde uma frase de cartilha do tipo "o boi baba e bebe" revela que os adultos não têm altas expectativas para todas as crianças.

Diante de tantas evidências demonstradas pelas produções publicadas que envolvem pensamento, criação e desejo de se comunicar pela escrita, perguntamos a você, leitor: será que as atuais políticas para alfabetização aproveitarão todo o potencial que as crianças possuem para aprender?

* Silvia Pereira de Carvalho é fundadora e coordenadora do Instituto Avisa Lá, e Raquel Franzim é coordenadora de educação do Instituto Alana.