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REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Cuidar do presente para não condenar o futuro

Neca Setubal - Sergio Lima/Folhapress
Neca Setubal Imagem: Sergio Lima/Folhapress

Neca Setubal*

05/02/2020 11h43

Fazer planos, sonhar com o futuro, enxergar-se construindo uma trajetória para si e para o mundo deveria ser um direito todos e todas, principalmente entre os jovens. Mas sabemos que a realidade concreta não segue esse caminho. De acordo com o Atlas da Violência 2019, 35.783 jovens foram assassinados em 2017. Não é à toa que esse capítulo da publicação recebeu o título Juventude perdida.

O recorte racial é importante quando olhamos para esse cenário. A taxa de homicídios entre homens jovens pretos e pardos em 2017 chegou a 185 a cada 100 mil habitantes de 15 a 29 anos, quase três vezes mais do que de brancos, com média de 63,5, informou estudo divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Episódios como o massacre de Paraisópolis, no qual nove jovens foram mortos em uma ação policial, evidenciam que uma parcela importante da nossa juventude está o tempo todo em risco. Desigualdades socioculturais, educacionais e territoriais, atravessadas por um cenário de violência, podem colocar em xeque o presente. O que diríamos, então, sobre o futuro?

Vale destacar que essa juventude periférica que está em risco é também a força que transforma seus territórios. Ao atuar no enfrentamento das desigualdades e no fomento a iniciativas de impacto social nas periferias da capital paulista, a Fundação Tide Setubal, instituição da qual sou presidente, passou a ter condições de enxergar com nitidez a potência dos moradores da região, em particular dos jovens, na produção de inovação em áreas diversas, como de tecnologia, cultura, empreendedorismo, entre tantas outras. Muitas vezes, é quem está no território que produz espaços e condições que proporcionam direitos sociais, culturais e educacionais aos seus moradores.

Não é honesto, porém, romantizar ou naturalizar a realidade. O direito à vida e ao desenvolvimento está diretamente ligado ao acesso e às oportunidades oferecidas, e sabemos o quanto as desigualdades socioespaciais afetam principalmente as periferias urbanas. De acordo com o Mapa da Desigualdade 2019, desenvolvido pela Rede Nossa São Paulo, o acesso a serviços diversos cai de modo significativo conforme o foco sai da região central e muda para territórios periféricos. Para se ter uma ideia, no âmbito cultural, 53 dos 96 distritos da capital paulista não apresentam centros, casas e espaços culturais, ao passo que 39 têm menos de um para cada 10 mil habitantes, 54 não possuem salas de cinema e 42 registram ausência de salas de teatro, para ficarmos em apenas alguns indicadores.

Mudar esse cenário depende de ações múltiplas de diferentes atores, poder público, sociedade civil, empresas. Acredito, desde sempre, na escuta, no diálogo e na construção conjunta com projetos, coletivos, instituições e moradores das periferias. O fazer com e não para, na minha visão, fortalece o caminho para mudança. Para isso é necessário estar presente: é preciso tomar a causa para si e defendê-la.

Pouco a pouco, o Investimento Social Privado tem transformado a sua atuação, deixando de lado o olhar para beneficiários e atentando para as parcerias possíveis com a troca de experiências e a valorização de saberes. É essa troca aberta, clara e transparente que nos faz reconhecer também nossas ausências. Nesta mesma coluna, Tony Marlon chamou a atenção para a ausência de fundações e institutos, quando das mortes em Paraisópolis, destacando: "Em pouco tempo não vão existir jovens" para apoiarmos se a história não for mudada e se não agirmos para tal.

O recado de Tony reforça a necessidade de nos posicionarmos. Instituições e fundações ligadas ao Investimento Social Privado têm papel fundamental no enfrentamento das desigualdades. É fundamental mostrar que a morte da juventude não é natural. Para além de apoiar, fortalecer e investir, é preciso falar sobre isso com nossos pares, debater, refletir, agir e influenciar. Afinal, a vida é o que mais importa.

*Neca Setubal é socióloga e educadora. Doutora em psicologia da educação, preside os conselhos do Cenpec e da Fundação Tide Setubal e pesquisa educação, desigualdades e territórios vulneráveis.