Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Como a ciência do clima tem contribuído para salvar vidas?
As mudanças climáticas são um dos maiores desafios globais, uma vez que envolvem ações coordenadas em diversas dimensões, tais como a ciência, o meio ambiente, a economia e a política.
A ciência está em busca constante de respostas e caminhos para proteger a vida na Terra. A pesquisa é coordenada pela comunidade científica por meio de milhões de pessoas e uma ampla variedade de ferramentas, modelos e análises. Dada a forma como o método científico é conduzido, isto é, definindo o problema e as hipóteses, realizando experimentos replicáveis, definindo conclusões e refinando resultados, cientistas e pesquisadores devem registrar suas descobertas em um artigo científico. Artigos científicos possuem regras próprias e são publicados em revistas científicas com mais ou menos credibilidade, a depender da qualidade da revisão por pares (checagem da robustez do estudo por especialistas) e de quantas vezes são citados pela comunidade (fator de impacto).
Nas últimas décadas, diversos estudos têm reunido uma grande quantidade de evidências que mostram os efeitos das alterações climáticas sobre os sistemas naturais e a influência humana sobre o sistema climático. O consenso de que as atividades humanas são a causa do aquecimento global é compartilhado por mais de 97% das publicações de cientistas do clima. Uma das iniciativas mais significativas neste campo é o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) que tem o propósito de revisar, sintetizar e divulgar o conhecimento científico mais avançado sobre as mudanças climáticas, publicando relatórios de avaliação a cada seis anos, em média. Na semana passada, inclusive, reuniram-se virtualmente, pela primeira vez, mais de 270 especialistas voluntários de 65 países para continuar trabalhando no próximo relatório de avaliação (AR6) a ser lançado em 2021-2022.
O IPCC foi categórico na conclusão do seu relatório especial sobre aquecimento global de 1,5°C em 2018: o aquecimento do planeta é inequívoco e, se as emissões globais continuarem nos níveis atuais, cerca de 40 bilhões de toneladas de Gases de Efeito Estufa (GEE) por ano, poderá ultrapassar, com alto nível de confiança, 1,5°C por volta de 2040, ocasionando aumentos substanciais em eventos climáticos extremos. As ligações básicas estabelecidas para essa situação são que a temperatura média global está diretamente relacionada com a concentração de GEE na atmosfera da Terra e essa concentração tem aumentado de forma constante oriunda, principalmente, da queima de combustíveis fósseis e mudança do uso do solo.
A influência da ação humana sobre o clima se dá, principalmente, pela dependência de fontes fósseis de energia e pela expansão da fronteira agrícola, que se relacionam aos processos de urbanização, crescimento e desenvolvimento econômico, desmatamento, estilos de vida, bem como decisões dos governos e do quadro institucional-regulatório.
Entretanto, nos últimos meses, como se fosse um piscar de olhos, o mundo tal como o conhecemos mudou. A pandemia global da Covid-19, que não se trata de um desastre natural, mas deve ser entendida como uma resposta da natureza aos danos que temos causado nas últimas décadas, continua se desenvolvendo em um ritmo impressionante, interrompendo vidas e o funcionamento do nosso sistema de produção. A maioria das grandes metrópoles tem abrandado seu metabolismo urbano, condicionando o movimento dos seus cidadãos via limitação de espaços públicos e suspensão de estabelecimentos comerciais e serviços. Pela primeira vez na história recente do mundo ocidental democrático, governos decretaram o estado de emergência, fechando fronteiras terrestres, marítimas e aéreas.
Nas ruas ouve-se o silêncio e os céus voltaram a ser dos pássaros. Em fevereiro, o tráfego aéreo mundial diminuiu 14,6% em relação ao mesmo período no ano passado. As tendências de movimento da população para locais de trabalho, residências, compras e recreação apresentam quedas significativas em diversas regiões do mundo, o que tem reduzido o uso de diferentes meios de transporte. O consumo de energia elétrica tem caído acentuadamente na Europa, bem como aqui no Brasil, onde o maior crescimento da demanda residencial não tem superado a queda no consumo industrial. Além disso, a guerra de preços do petróleo, juntamente com a pandemia da Covid-19, criou uma tempestade perfeita no setor de petróleo e gás, gerando um impacto de curto e médio prazos altamente negativo, com excesso de oferta e preços baixos que podem durar alguns anos.
Fruto dessas transformações, esta crise se traduz em reduções relevantes de poluentes atmosféricos nas grandes cidades e GEE pelo mundo. Pela primeira vez em décadas, habitantes de grandes metrópoles, como Nova Delhi, Paris e São Paulo, voltaram a ver o azul do céu e registraram mínimos históricos de concentração de material particulado. Estimativas que levam em conta toda a produção econômica da China e dos EUA, o mercado de carbono da União Europeia, o setor de elétrico da Índia e o setor de petróleo global, mostram que as emissões de dióxido de carbono (CO2) em 2020 podem ser cerca de 5,5% menores do que em 2019. Entretanto, a pandemia da Covid-19 vai impactar severamente o crescimento econômico em muitas outras regiões do planeta. Conforme mostram as recentes projeções do FMI, o PIB mundial deve apresentar queda de 3% em 2020. Curiosamente (ou não), os países em destaque de queda no crescimento econômico são aqueles que frequentam a lista dos maiores emissores nos últimos anos.
Considerando estes impactos econômicos sobre os principais países emissores, é possível que as emissões globais de CO2 se reduzam mais do que 5,5% ao final deste ano.
Por outro lado, sabemos que durante esta década o mundo precisa reduzir suas emissões entre 6-7% ao ano para limitar o aquecimento global em 1,5°C acima dos níveis pré-industriais até ao final do século, conforme recente estudo publicado na revista "Nature". Sendo assim, poderiam nossas medidas de isolamento para salvar vidas da COVID-19 nos fazer ganhar tempo no que diz respeito às mudanças climáticas? A resposta: (muito) provavelmente não. Embora seja certo que a pandemia terá um impacto significativo nas emissões globais de CO2 em 2020, este efeito provavelmente não será forte, nem prolongado o suficiente para alterar significativamente as emissões acumuladas da trajetória de aquecimento do planeta.
As restrições sociais, atualmente em vigor, não são consideradas toleráveis a longo prazo e, se as recessões passadas (como os choques do petróleo na década de 1970 e a crise financeira em 2008) servirem como guia, qualquer redução das emissões agora será apenas uma pausa, não podendo ser celebrada (ainda).
"Pausar nossas emissões é o mesmo que uma pessoa perder peso quando está doente. Quando ela voltar a ter imunidade e voltar a se alimentar bem, vai voltar a ganhar peso. Não é dessa forma que a pessoa vai ficar saudável, mas sim se mudar seu comportamento em direção a uma vida saudável", diz a ambientalista Natalie Unterstell no excelente podcast A Terra é Redonda. Contudo, trata-se de uma pausa importante no sentido de repensarmos o nosso papel como espécie e o nosso modo de viver para contribuir com a sustentabilidade do planeta.
O que vai acontecer quando retornarmos a nossa vida pós-pandemia? Talvez, nosso maior aprendizado seja o sucesso do conceito de "achatar a curva", seja de contágios da Covid-19, da perda de biodiversidade ou de emissões de GEE. Nos próximos meses, é possível que virologistas descubram uma vacina para nos proteger do vírus. Contudo, nas próximas décadas, a temperatura média global do planeta pode atingir níveis críticos para o sistema climático. A "vacina" contra a crise climática não depende apenas de descobertas científicas, mas sim de ações orquestradas por governos, setor privado e sociedade civil.
Podemos ter uma perda global de US$ 150 trilhões a 790 trilhões até 2100, se os países não cumprirem o Acordo de Paris. Nesse momento, a ciência tem um papel essencial em apoiar tomadores de decisões a implementar estratégias de retomada econômica que, simultaneamente, sejam socialmente inclusivas e ambientalmente sustentáveis.
Mais de 190 países de todas as regiões do mundo anunciaram ambiciosos estímulos econômicos na sequência da pandemia da Covid-19. Há dois desafios econômicos fundamentais para atravessar a crise atual: primeiro, manter a renda das pessoas; segundo, não deixar as empresas quebrarem. É preciso manter pessoas vivas e empresas saudáveis para que tudo volte a funcionar após o período de isolamento. Contudo, há diversos fatores que os governos devem considerar ao montar seu pacote de estímulos que vão desde as necessidades imediatas para os próximos meses, como criação/manutenção de empregos, impulso à atividade econômica e ao ambiente de negócios, a critérios de longo prazo, considerando a sustentabilidade no seu sentido mais amplo.
Neste contexto, necessitamos repensar nossos padrões de consumo. A pandemia nos ensinou que aqueles que vivem com muito, podem aprender a viver com menos. Nos últimos meses, mais de metade da população mundial se viu obrigada a estar confinada em suas casas, limitando seus deslocamentos e recorrendo a serviços digitais. A busca por serviços de delivery atingiu máximos históricos nas plataformas de busca e vimos um aumento significativo no consumo de produtos locais. Assim, sabemos que é possível viver com menos e melhor, procurando serviços digitais e produtos locais que tendem abser mais responsáveis do ponto de vista ambiental e social.
Além disso, é preciso projetar o potencial de crescimento futuro, analisando seu impacto no capital humano, natural e físico. Investir ao longo do tempo em bens públicos importantes, como fontes modernas de energia, saneamento e ciência, como forma de garantir maior resiliência e adaptação a choques futuros.
É importante incentivar tecnologias limpas e reduzir a nossa dependência de combustíveis fósseis, entrando com os dois pés em uma economia de baixo carbono. Muitos especialistas acreditam que a crise atual deve acelerar a transformação do setor de petróleo e gás natural, canalizando sua transição para as energias renováveis, já em andamento e alterando sua abordagem em relação às mudanças climáticas.
Por último, é fundamental solucionar antiquadas falhas de mercado, como subsídios às indústrias de energia fóssil, atividades grandes emissoras de CO2. Estimativas recentes indicam subsídios globais na casa dos US$ 5 trilhões por ano ou 6,5% do PIB global. Em um mundo sem esses subsídios perversos, as emissões globais poderiam cair mais de 25%, mortes por poluição atmosférica teriam sido cortadas quase pela metade e a receita dos governos poderia aumentar em cerca de 3,8% o PIB mundial, conforme estudo do Fundo Monetário Internacional.
A crise atual talvez atenue a dura realidade de questionamento à ciência, com debates desonestos e rasos. Caminhamos para uma encruzilhada e não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar esta oportunidade de transformar nossa sociedade para um futuro melhor, mais saudável.
Este é um momento de transformação, de revisão de crenças e valores, no sentido humanista, em que todos nos sentimos confinados e devemos perceber que nossos destinos estão ligados por um metabolismo planetário. Quer gostemos ou não, nossas ações individuais são essenciais para a reconstrução de uma sociedade inclusiva, sustentável e resiliente aos desafios do futuro. Quando nos for possível retornar às nossas atividades, sem constrangimentos de isolamento, devemos ter atenção ao novo normal. Pense que a recuperação será em V, de verde, mas, por enquanto, se puder, fique em casa.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.
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