Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Mãos pretas: de onde vem a boa notícia em meio à pandemia
No último dia 14 de abril, nós, quilombolas dos municípios de Itapecuru-Mirim e Miranda do Norte, no Maranhão, recebemos com preocupação a notícia de que o governo federal pretende retomar as obras de duplicação da rodovia BR 135 em maio, em meio à pandemia do novo coronavírus.
As obras foram suspensas em 2018, depois que lideranças do quilombo Santa Rosa dos Pretos, em Itapecuru-Mirim, denunciaram ao Ministério Público Federal (MPF) e à Defensoria Pública da União (DPU) as ilegalidades cometidas pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Trânsito) em territórios tradicionais, iniciando as obras sem nunca terem nos consultado previamente, como obriga a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Mesmo sem a consulta, o DNIT começou as obras nos quilombos em 2017, matando árvores centenárias, destruindo igarapés, danificando nossas casas, nos ameaçando e humilhando dentro dos nossos territórios, onde estamos desde o século 17.
A BR 135 rasga os quilombos de diversos municípios maranhenses há quase 80 anos. Retomar a duplicação rodovia no contexto da pandemia de Covid-19, além de reforçar as ilegalidades já cometidas pelo governo, significa a manutenção de uma política de Estado que conhecemos há pelo menos três séculos: o nosso genocídio. Implantar canteiros de obras à porta de nossas casas e trazer trabalhadores de fora para nossas comunidades é nos expor à contaminação e à morte. O quilombo Santa Rosa dos Pretos, onde moro, tem mais de 350 famílias - cerca de duas mil pessoas - e não conta com um posto de saúde sequer.
Em meio a tanta violência, a boa notícia só pode vir de um lugar: das nossas mãos pretas. Faço parte de uma geração de jovens do quilombo que bebe diretamente na luta ancestral dos nossos mais velhos por terra e território. Deles aprendemos que, se em 520 anos os invasores nunca quiseram nos respeitar, por que agora nos respeitariam? Se nunca souberam conversar, por que agora saberiam?
Aprendemos que a luta que emancipa é a luta por autonomia, de nós por nós e para nós. Isso não significa que não tenhamos aliadas e aliados fora dos nossos círculos pretos, nem que não exigimos de gestores do estado políticas públicas que nos contemplem. O fato é que a gente não se ilude com a estratégia centenária e embranquecida que rouba o que é nosso pra nos devolver a conta-gotas e em troca de votos. A gente não negocia nossa vida. A gente faz ela brotar do chão com as nossas mãos, como aprendemos com nossas pretas e pretos velhos.
Nossa juventude do quilombo Santa Rosa dos Pretos está organizada em um coletivo chamado AAQ (Agentes Agroflorestais Quilombolas). Buscamos autonomia alimentar por meio da agrofloresta; autonomia de água por meio da recuperação de nascentes e cursos d'água com plantio de árvores nativas; e autonomia de pensamento, por meio da implantação de um currículo quilombola autônomo na escola da comunidade.
Nesse sentido, sobreviver à pandemia também tem sido uma luta autônoma: nós mesmos nos organizamos para orientar os jovens e velhos sobre auto-cuidado e cuidado coletivo. Buscamos e conseguimos apoio de aliadas e aliados de outras partes do país, recebemos recursos, compramos 698 cestas básicas e estamos distribuindo a irmãs e irmãos quilombolas de diversos territórios do município que precisam de alimento.
Nossa estratégia é simples, mas não é fácil. Sofremos racismo, dentro e fora do território, e a tentativa de apropriação da nossa luta autônoma pela política partidária. Mas não recuamos. Nossos Encantados estão com a gente.
Agora, diante de mais essa tentativa dos herdeiros da casa grande de submeterem nosso povo ao genocídio, iniciamos hoje uma campanha-manifesto pela nossa vida e contra a política de morte do estado brasileiro e seus operadores - aqui, já aproveito para pedir o seu apoio, leitora e leitor desse texto.
O que o estado precisa fazer por nós, quilombolas, nesta pandemia, é parar de tentar nos matar, como fazem agora com a possibilidade de retomada das obras de duplicação da BR 135. Quanto a nós, jovens de Santa Rosa dos Pretos, seguimos em luta autônoma pela terra e território - nosso corpo e nossa vida -, onde estamos e somos desde sempre.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.
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