Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Revisitando a democracia racial
Hoje é senso comum que a democracia racial foi um conceito desenvolvido no Brasil e um mito desmentido pelas evidentes e contínuas violências e desigualdades raciais no país. Nas próximas linhas, abordarei a história transnacional, controversa e polissêmica desse conceito antes de assumir sua forma contemporânea.
A democracia racial não tem um significado geral único. Como foi usada por intelectuais diferentes, entre os anos 1910 e 1970, pode se referir a uma sociedade democrática em que raças distintas compartilham os mesmos direitos civis, culturais e políticos; pode significar também ausência de linhas de cores em uma sociedade civil, independentemente de seu regime político; pode significar relações fraternas e íntimas entre raças que convivem numa sociedade racialmente miscigenada. Cada um desses significados foi desenvolvido historicamente no seio de uma rica tradição intelectual que se entrelaça à medida que o tempo evolui.
Cronologicamente, o primeiro registro acadêmico da expressão foi feito nos Estados Unidos por Alberto e Hoffnung-Garskof (2018). De fato, entre os africano-americanos, desde pelo menos 1914, o uso da expressão democracia racial tem sido generalizado, embora não seja proeminente. Assim, Ray Stannard Baker, jornalista branco, escreveu em "The Burden of Being White", publicado originalmente na "American Magazine" (1914) e republicado em "The Crisis", a revista dirigida por W.E.B. DuBois:
"A defesa de uma aristocracia racial significa guerra, ódio, exclusividade árida e, finalmente, degeneração e fracasso: uma posição pela democracia e irmandade raciais significa amor no mundo, amizade, sacrifício, nova fertilidade, uma busca mais ampla pela fé e o triunfo final. Os indivíduos podem sofrer no processo, as nações podem perecer, mas a civilização, o reino da humanidade, crescerá, ficará mais bonita" ("The Crisis", abril de 1915, páginas 279-80).
No início do século 20, o termo democracia ainda era usado em contraste com a aristocracia, como no resto das Américas. A associação entre formas de governo e raças, entre raças e sociedades, e as diferenças entre sociedades aristocráticas e democráticas, foi muito discutida no século 19 por políticos e intelectuais latino-americanos e americanos.
Em 1861, o político e escritor colombiano José Maria Samper publicou em Paris seu ensaio sobre a Revolução Política e Condição Social das Repúblicas Colombianas, no qual, entre outras ideias, argumentou que "a democracia [era] o governo natural das sociedades mestiças".
Para o Negro americano (como se chamavam os africano-americanos nos Estados Unidos de então), o ideal da democracia política deveria, para ser eficaz, incluir oportunidades e tratamento iguais entre as raças que compunham a nação americana. Portanto, não foram os intelectuais brancos, mas os africano-americanos que primeiro reivindicaram a democracia racial. Os intelectuais liberais antirracistas eram seus grandes aliados. No início da década de 1940, o termo democracia racial, embora menos utilizado que outras expressões como igualdade racial ou justiça racial, já estava circulando nos Estados Unidos com seu atual significado de igualdade política, social, econômica e cultural entre brancos e negros, mas sem qualquer conotação de fraternidade ou miscibilidade racial. Pode-se encontrá-lo, por exemplo, no famoso "Um Dilema Americano" (1942: 648), de Gunnar Myrdal, e será consagrado nesse sentido na academia estadunidense por autores clássicos da sociologia da formação racial, como Omi e Winant (1983).
A conotação de fraternidade, intimidade e miscibilidade entre as raças foi acrescentada ao significado da democracia racial quase ao mesmo tempo em que se desenvolveu a ideia da América Latina como um continente de sociedades mestiças, conforme expresso por Samper acima. Maria Lucia Pallares-Burke (2005, 2012) documentou como o pensamento de Gilberto Freyre foi marcado por essas ideias que evoluíam em torno da formação das sociedades mestiças, apaixonadamente defendidas por seu colega Rudiger Bilden, da Universidade de Columbia, na década de 1920, e resumidas em um pequeno artigo - "Brasil, Laboratório da Civilização" (Bilden, 1929). Acrescente-se às ideias de Bilden o projeto inovador de construção da nação mexicana, anunciado por Gamio (1916) e Vasconcelos (1925) e em torno do ideal de formação de uma meta-raça, a nação mestiça.
No entanto, singularizando os projetos nacionais mexicano e brasileiro havia fatos geográficos, demográficos e distinta ênfase política. Enquanto os mexicanos, que faziam fronteira com o império capitalista que se formava ao seu norte, enfatizavam sua herança indígena e valorizavam seu passado asteca e maia, os brasileiros, linguisticamente isolados na América do Sul, encastelados no litoral onde vicejaram as plantações escravistas, silenciavam seu passado indígena e enfatizavam a herança trazida por africanos escravizados, especialmente bantu e iorubá. As realidades geopolíticas do Brasil e do México em relação aos Estados Unidos e à Europa, moldaram respostas diferente à raça. Os mexicanos, contrariando o racismo americano, imaginaram-se uma meta-raça, a raza cósmica; os brasileiros, imaginaram-se uma nação embranquecida, culturalmente europeia, de raças amigáveis e miscíveis (Saldivar e Silva 2018). Na década de 1930 esse imaginário nacional brasileiro foi reelaborado por Freyre, que ironicamente preferia falar de democracia ética e social, ao invés de democracia racial (Freyre usa racial democracy, segundo Levy Cruz, em 1949, mas só volta a fazê-lo nos anos 1960) talvez para evitar reconhecer o que de fato era o racialismo brasileiro; enquanto Gamio e Vasconcelos, que imaginavam uma meta-raça, acionavam propriamente um imaginário étnico.
Em suma, empregar a noção de democracia racial (divorciada de sua conotação política de cidadania plena, política representativa e direitos civis e sociais entre as raças) é empregar o conceito de democracia como pura atitude cultural e moral em relação às raças subordinadas, amalgamadas em uma nação única. Esse emprego encontrou aceitação intelectual devido à atmosfera política da década dos anos 1930, marcada pelo avanço do racismo e fascismo na Europa. Era o modo de trazer o Brasil para o seio das nações democráticas, em oposição ao eixo nazi-fascista, para o qual Vargas e outros ditadores latino-americanos pendiam. Os africano-americanos, no entanto, sempre colocaram mais ênfase na igualdade e na justiça raciais, reconhecendo a democracia representativa e a existência política e histórica de raças como marcos fundamentais da sociedade norte-americana. Brasileiros, mexicanos e latino-americanos, por outro lado, enfatizaram o ideal das nações mestiças resultantes da conquista de gloriosos impérios indígenas por Portugal e Espanha.
Todavia, somente no Brasil da década de 1940 a noção de democracia racial, definida por Freyre (1938) e Ramos (1943), ganhou plena recepção de líderes negros, de intelectuais progressistas e da grande imprensa. Isso aconteceu uma década antes da expressão ser internacionalmente introduzida nas ciências sociais pela UNESCO (Wagley, 1952).
Às vezes, as ideias precedem seus nomes atuais, às vezes expressamos novas ideias através de nomes antigos. No caso da democracia racial, como a conhecemos no Brasil do século 20, a expressão foi usada em pelo menos três sentidos distintos: foi ideal de direitos iguais entre raças em uma democracia política liberal, à maneira americana; foi usado como hierarquia racial em uma ordem social autoritária limitada (Gomes 1997; Campos 2007) por nacionalistas brasileiros como Menotti del Picchia (1935) e Cassiano Ricardo (1937); e, por fim, significou fluidez, mistura, intimidade e convivência entre raças e, nesse sentido, foi referida pela primeira vez como democracia étnica e social por Freyre.
Em política internacional, a democracia racial à brasileira foi apresentada ao mundo como antirracismo, em contraste com o racismo nazista e fascista; no Brasil, durante a Guerra Fria, foi usada para contrastar as práticas racistas nos Estados Unidos ou na África do Sul com as nossas relações raciais; enquanto na África, foi usada por Freyre e pelos salazaristas para promover o colonialismo português.
É um fato que os líderes negros brasileiros somente repudiaram a expressão democracia racial após o desmantelamento do experimento democrático do pós-guerra (1945-1964), quando intelectuais de esquerda como Octavio Ianni (1962) e Florestan Fernandes (1964) começaram a denuncia-la como mito e líderes negros como Abdias Nascimento (1968) a referiam como logro. Isso porque, durante as décadas de 1960 e 1970, o regime autoritário brasileiro passou a usar extensivamente o ideal da democracia racial para ocultar as desigualdades raciais e o racismo institucional e estrutural que substituiram o racismo doutrinário do século 19. Esse uso doméstico e estatal acabou se espalhando por toda a América Latina, quando os governos da região o acionaram para contrapor-se aos protestos negros que emergiram nos anos 1990, principalmente em países com importantes populações negras, como Cuba (De La Fuente 2001), Colômbia (Wade 1993) e Venezuela (1990).
Os usos e os sentidos da democracia racial, portanto, tiveram agentes diferentes, com interesses políticos também distintos. Alguns dos seus protagonistas foram intelectuais modernistas; outros, africanistas norte-americanos e latino-americanos; outros, ainda, foram intelectuais negros norte-americanos e brasileiros; mas houve também instituições, como o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, a UNESCO e o Departamento de Estado dos EUA, a participar desse jogo semiótico. Em certas ocasiões, esses interesses convergiram; em outras, divergiram. Analisar essa polissemia, com todas as dificuldades da geneologia social, parece ser o caminho correto para entender cada um desses usos e dos interesses que eles expressam.
Embora devamos reconhecer os efeitos benignos da democracia racial para combater o racismo explícito e violento, a sua história aponta o fracasso dos estados americanos oriundos do colonialismo europeu em integrar social e politicamente as populações africanas trazidas e escravizadas no Novo Mundo. Esse fracasso ficou claro quando a sociedade de Herrenvolk (Ellis 1991) do Deep South americano começou a ser repudiada junto com o racismo fascista e com o holocausto que lhe seguiu. Novas ideologias raciais e novas políticas de integração tiveram que ser imaginadas e implementadas na Europa e na América. Nos Estados Unidos, o desenvolvimento das ciências sociais de Franz Boas, na Universidade de Columbia, e Robert Park, Louis Wirth, Ernest Burgess e Everett Hughes, na Universidade de Chicago, apontou para um possível caminho de antirracismo, principalmente devido à sua articulação acadêmica. Na Nossa América, algumas vezes mediados pelo Departamento de Estado dos EUA e pela UNESCO, intelectuais, artistas e cientistas sociais latino-americanos, principalmente de Cuba, Haiti, Brasil e México, se engajaram em um grande esforço de imaginação antirracista (Graham 2019) no qual a democracia racial veio à luz.
Esse texto é uma síntese do artigo "A democracia racial revisitada" a ser publicado no número 60 da revista Afro-Ásia, da Universidade Federal da Bahia, no prelo.
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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.
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