Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Como eu virei um "tiozão brasileiro" de jovens refugiados na Europa
Há pouco mais de quatro anos eu fiquei desempregado pela primeira vez na vida. Como muitos outros companheiros de profissão, fui engolido pela "nova normalidade" do consumo de informação, ou, como nós jornalistas conhecemos bem, fui vítima de um "passaralho". Muita gente diz que eu sou muito "flower power" ou um "eterno otimista", mas a questão é que até hoje eu agradeço por terem me demitido. Não fosse por isso, eu, muito provavelmente, ainda estaria na minha zona de conforto, bom salário, vivendo no Rio de Janeiro - que apesar da violência, para mim ainda é a cidade mais linda do mundo.
Não quero fazer deste texto um artigo de autoajuda. Apenas gostaria de frisar que, neste Dia Mundial do Refugiado, eu me sinto realizado pelas escolhas duras que fiz quanto ao lado profissional. Porque, claro, jornalista tem aquela coisa do ego. Meu nome vai desaparecer, aos poucos, já estou perto dos 40 anos, que medo de ser um cara frustrado na vida. Para a minha felicidade, e graças à ajuda econômica que encontrei de uma família brasileira (veja agradecimentos abaixo) que também se apaixonou pela causa, isso não só não aconteceu, como me proporcionou os anos mais importantes da minha vida. Principalmente no que vem a ser uma espécie de descobrimento pessoal, um exercício de reflexão sobre as suas capacidades que eu recomendo de olhos fechados.
Quando falo com algum amigo(a) brasileiro(a) que há tempos não tenho contato, costumo explicar que o jornalista que eles conheciam agora, à sua maneira, é professor de inglês, educador social, dá aulas de como se comportar numa entrevista de trabalho, virou conselheiro amoroso e até personal trainer de jovens refugiados e imigrantes do sexo masculino, entre 18 e 30 anos, que chegam à Europa em busca de um futuro digno.
Ainda dou aulas de fotografia e edição de vídeos, publico algumas reportagens aqui no UOL, mas é impossível pensar em ser, diariamente, um jornalista e documentarista, meu grande sonho, quando você lida com vidas humanas. Aos poucos, você percebe que, realmente, seu trabalho social planta uma semente na vida de garotos que chegam totalmente perdidos ao Velho Continente. São os chamados jovens não acompanhados, que viajam sem a família, entram nos botes ou escalam montanhas simplesmente porque acreditam que em seus países de origem é impossível almejar uma vida segura.
Minha jornada começa em abril de 2016 no porto de Pireus, Grécia, ao lado da capital Atenas. Já escrevi sobre essa experiência no TAB , quando vivi por dois meses num armazém dentro de um campo de refugiados. Ali foi o "click", um despertar para uma situação gritante e que viria a ser a base do meu trabalho nos anos seguintes. Eram vários os rapazes que viajavam sozinhos à Europa. Totalmente estranhos no ninho que deveria ser o porto seguro deles, com o falso ideal do "paraíso europeu", estes jovens chegavam a um país estranho, sem falar a língua local, encaravam sem qualquer preparo uma nova cultura, enfim, estavam totalmente perdidos. Sem qualquer tipo de referência.
Percebemos também que existia uma enorme lacuna no sistema: enquanto famílias, crianças e idosos tinham total preferência, por exemplo, para conseguir um colchão dentro de um contêiner num campo de refugiados, seja onde for, esses garotos eram os últimos da fila. E acabavam dormindo nas ruas. Sem ajuda e com fome e sede, vendiam drogas, eram recrutados por máfias das mais diversas, se prostituíam... pura questão de sobrevivência.
Vocês não têm ideia da quantidade de jovens que conheci que fizeram esta escolha que eu simplesmente não posso julgar. Será que eu, na mesma condição, não faria o mesmo? Qualquer semelhança com o desastre social do Brasil não é mera coincidência, vale dizer.
- 79,5 milhões de pessoas estão deslocadas no mundo por motivos de guerras, perseguições e violações de direitos humanos. Dados relativos ao ano de 2019.
- Este deslocamento forçado representa 1% de toda a humanidade, ou 1 em cada 97 pessoas. É um número nunca antes constatado em toda a história!
- O deslocamento forçado praticamente dobrou na última década: eram 41 milhões de pessoas em 2010, e agora são 79,5 milhões de seres humanos.
- Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar já contabilizam dois terços das pessoas deslocadas além das fronteiras nacionais, o que caracteriza a situação de refúgio.
- Chama muita a atenção o contexto venezuelano: são 3,6 milhões de "hermanos" deslocados no estrangeiro, principalmente Colômbia e Brasil. A Venezuela já é o segundo país no mundo com mais refugiados.
- Os venezuelanos foram os que mais entraram com pedidos oficiais de refúgio em 2019: 430 mil, no total. Bem à frente dos afegãos, com 105 mil registros.
- Em seu décimo ano de conflito, A Síria contabiliza, sozinha, 13,2 milhões de pessoas refugiadas ou deslocadas internamente no país. É um sexto do número total do novo relatório.
- Já são 34 milhões de crianças deslocadas em todo o mundo, sendo dezenas de milhares desacompanhadas dos pais. É o equivalente às populações de Austrália, Dinamarca e Mongólia juntas!
- Você pode pensar que 1% da humanidade seja pouco. Mas e se acontecesse com você, com seus entes queridos? Lutamos pela conscientização sobre o tema e por um mundo sem fronteiras
Fonte: Acnur. Para mais informações, clique aqui.
A questão é que eu conheci ativistas de uma associação espanhola chamada Holes in the Borders, que também estiveram no já extinto campo de Pireus. Resumidamente, juntamos forças: a família que sempre me ajudou montou uma ONG chamada Planeta de TODOS, da qual hoje sou coordenador. E junto com dezenas de outros voluntários, que também foram essenciais nesta louca jornada, colocamos, aos poucos, o nosso plano em prática.
O que fizemos: alugamos apartamentos em Atenas e Roma, as capitais de Grécia e Itália, que são as grandes portas de entrada de refugiados e imigrantes em solo europeu. O nosso lema: essas casas não são hotéis, e sim parte de um programa de integração sócio-laboral. O nosso objetivo: fazer com esses jovens entendam o novo contexto em que estão inseridos e busquem independência financeira. O que provemos: aulas de idiomas, assessoria jurídica para solicitação de asilo além da casa, comida e roupa lavada - que eles próprios cozinham e lavam, porque aqui ninguém é mamãe e papai de ninguém. As regras básicas: respeitar religiões, nacionalidades e orientações sexuais diversas, além de estar proibido o consumo de álcool e drogas dentro das casas. E tem que limpar tudo e fazer uma lista de compras, porque, sempre repetimos: isso aqui não é um hotel.
Eu ainda vou escrever um livro sobre as diversas experiências e situações surrealistas que vivi nestes últimos quatro anos - contar histórias nunca vai deixar de ser a minha "cachaça", como diz o jargão da paixão jornalística. De momento, nesta data tão importante, gostaria de agradecer ao Bashar, Síria, por ter me deixado ensiná-lo como se usa um barbeador quando nasceram os seus primeiros fios do bigode.
Queria pedir desculpas se fui muito rígido com os seis africanos com os quais morei na mesma casa em Roma por oito meses, simplesmente porque o hotel em frente ao nosso edifício recebia muitos turistas. Muitas meninas. E eles flertavam. Na madrugada. Pelas respectivas janelas. E eu só estava preocupado que a casa estava com o meu nome no contrato e eu não queria que os carabinieris (polícia italiana) batessem em casa de novo perguntando pelo tal do André Naddeo, que aluga casa para imigrantes negros em Roma.
Queria dizer ao Abdul, Sudão, que estou muito feliz que ele, enfim, tenha aprendido a colocar a quantidade certa de sabão na máquina de lavar. O mesmo vale para o David, Nigéria, que já não deixa os pedaços de frango soltos no congelador. Tudo empacotado, limpo e organizado.
E também ao Alagie, Guiné-Bissau, que hoje é um mestre dessa invenção chamada micro-ondas, que ele nunca tinha visto na vida, e também por já não deixar mais o fogão com o gás aberto, o que faria do nosso projeto algo literalmente explosivo. Ao Aedi, Gâmbia, meus sinceros cumprimentos por ter aprendido que mulheres não são objetos que você pode tocar quando te dá vontade só porque o seu corpo está cheio de músculos sarados.
Vocês nunca tinham vivido num apartamento na vida. Hoje, com o próprio suor de vocês, foram capazes de alugar e pagar a sua própria moradia - lembra que eu sempre falei "que eu não vou viver por muito tempo com vocês?". Para aquele vizinho que na primeira semana ligou para a proprietária perguntando 'quem são esses negros na sua casa' vocês podem, mais do que nunca, pegar o elevador de cabeça erguida. E esfregar na cara dele o contrato novo, que vocês mesmos, agora independentes, empregados, podem pagar.
Queria também deixar o meu muito obrigado ao Amin, Mianmar, por ter entendido onde fica o Brasil no mapa - nunca vou esquecer das nossas aulas de geografia e história, hoje você, assim como os seus companheiros de projeto em Atenas, sabe quem foi o Nelson Mandela e entende perfeitamente o seu legado. Ah, também estou feliz que você desistiu de gastar dinheiro com whey protein para a musculação, né? Existem outras prioridades na vida no momento em que você não tem fonte de renda - e os armários de casa sempre estiveram cheios de grão-de-bico, rica fonte de proteínas. Você foi um grande companheiro de treinos! Pena que veio o coronavírus e aí não teve mais como.
Queria dizer ao John, Afeganistão, que o perdoo por simular a sua morte depois que você deixou o projeto. Jamais vou entender o que é ser perseguido pelos Talibãs a ponto de você ter que inventar nas redes sociais que morreu num acidente de bicicleta - só para que os radicais deixem a sua família em paz na sua terra natal. Você produziu muita angústia em todos nós. Mas você está vivo. Mais vivo do que nunca: hoje trabalha como intérprete em sessões de psicologia de uma grande organização humanitária e está ajudando gente com os mesmos problemas que o seu. Quem diria que aquele jovem assustado que não falava uma palavra de inglês agora é mediador cultural?
Queria finalizar, enfim, afirmando que estamos todos muito orgulhosos de vocês. Foram mais de 80 jovens e a grande maioria entendeu, mesmo que a duras penas, o nosso conceito de integração social. E que sem aprender a falar inglês, italiano ou grego vocês não vão chegar a lugar nenhum. Não à toa hoje vocês são mão-de-obra de primeira linha para as ONGs que necessitam de intérpretes sobre o terreno.
Muita gente estuda por anos para ser mestre, doutor ou PhD, sei lá o que mais. Eu optei pela universidade da vida. A que me ensinou a realidade nua e crua, longe do conto de fadas das redes sociais. A falar quatro línguas fluentemente, a avançar muito com o meu francês antes mambembe (o sotaque francófono africano é uma maravilha) e entender diversas palavras de árabe e grego. Além, claro, de ter me tornado um cozinheiro internacional capaz de fazer um frango biryani de fazer inveja a qualquer paquistanês.
A universidade da vida que, por fim, me ensinou que em momentos tão sombrios como o que estamos vivendo, a resiliência de quem deixou tudo para trás em busca de um futuro decente é o melhor exemplo de perseverança que poderíamos ter atualmente.
E que o "tiozão brasileiro" vai continuar firme e forte na luta.
Um feliz Dia Mundial do Refugiado a todos vocês.
Agradecimentos especiais: Laila Ben Chaouat El Fassi, grande companheira de projeto e de vida. E ao Tales Vilar, vice-presidente do Cartão de TODOS, por acreditar em mim e, especialmente, na causa. Se você e toda a sua família não tivessem me apoiado ninguém estaria lendo este artigo agora mesmo. Ele simplesmente não existiria.
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