Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Milhões cujo direito ao saneamento é negado não são "vasto mercado"
O Brasil enfrenta o desafio de atingir a cobertura de rede de esgotamento sanitário em uma batalha que já passa de meio século. Nações em desenvolvimento deveriam repensar a construção das políticas públicas, principalmente as básicas, como as relacionadas à universalização de água e esgoto, havendo uma conjugação de forças para proteger a população mais vulnerável, levando em consideração as heterogeneidades - tanto físicas quanto sociais - de um país com dimensões continentais como o Brasil.
Como se não bastasse uma pandemia, crises políticas e econômicas, "boiadas" vão passando, em referência ao que disse em maio o Ministro do Meio Ambiente, ao defender mudar regras enquanto a atenção da mídia está voltada para a covid-19. Nessa tal de "boiada" está a aprovação pelo Senado, na quarta-feira (24), do PL 4.162/2019 que atualiza o novo marco legal de saneamento básico. O foco é a universalização, e a fim de alcançar o objetivo foi chancelada uma maior abertura ao capital privado para um serviço, até então, majoritariamente de natureza pública.
No próprio parecer há um tópico que diz: "o contexto é de oportunidade" (pág. 11). Sobre a justificação dessa aprovação, alguns pontos que podemos indagar:
1. "O caráter inelástico da demanda por serviços de saneamento, ou seja, a alta resiliência de sua capacidade de gerar receita mesmo em época de crise, tendo em vista que esse tipo de despesa é a última que as famílias cortam".
Talvez o correto dessa frase seja dizer que serviços de saneamento são indispensáveis para a sobrevivência, devendo ser desenhados em um modelo que atenda a população "mesmo em época de crise".
2. "O fato de que existe ainda um vasto mercado a ser desenvolvido, com 104 milhões de pessoas sem coleta e tratamento de esgotos adequados e 35 milhões de brasileiros sem acesso a água em quantidade ou qualidade aceitáveis".
Talvez a infeliz expressão "vasto mercado" não esteja posta de maneira pertinente. Na realidade, o que temos são famílias com condições heterogêneas que vivem na marginalidade de serviços essenciais para a dignidade humana.
Agora pergunta-se: oportunidade para quem?
Prós Maior aporte financeiro no setor; Maior interesse de investidores - para regiões rentáveis; Aceleração da universalização do serviço - nas grandes cidades e regiões metropolitanas; Crescimento de índices de eficiência do serviço prestado; Imparcialidade política na alocação de recursos do serviço.
Contras Possível aumento de tarifa, visando o lucro por parte do capital privado; Dificuldade de obtenção de dados transparentes por parte do poder público (regulação); Desinteresse dos empresários em abastecimento de cidades ou regiões frágeis economicamente.
Doenças que não vão embora
Apesar de o coronavírus ser o foco do ano de 2020, o Brasil tem casos preocupantes de doenças vinculadas a ausência de medidas estruturais e estruturantes na cobertura de água e esgoto. "O brasileiro tem que ser estudado, cai no esgoto e nada acontece". As palavras proferidas pelo atual presidente do país, Jair Bolsonaro, geram sensações que migram do repúdio ao choque com a ignorância.
No estudo apresentado por Paiva e Souza, as internações e despesas recorrentes por doenças vinculadas com a água e suas condições confirmam a associação entre vulnerabilidade socioeconômica e significativas taxas de internação e proporção de gastos. As regiões Norte e Nordeste possuem uma baixa instalação de infraestruturas que garantam o funcionamento de sistema de esgotamento e abastecimento de água, e por consequência concentram também um significativo número de internações de doenças de veiculação hídrica.
A dengue, por exemplo, foi eliminada em 1955 mas, por falhas na cobertura de controle, em 1976 ocorreu sua reintrodução no território brasileiro. No ano de 2019, até 13 de abril, foram registrados 451.685 casos prováveis de dengue no país - aumento de 339,9% em relação ao mesmo período do ano passado. A oferta irregular de água faz com que as pessoas tenham que estocá-la em reservatórios, os quais, muitas vezes, servem de local de reprodução dos mosquitos.
No caminho inverso
A literatura ensina que os países trabalham de maneira distinta as abordagens sobre o acesso universal aos serviços de saneamento ("Regulation of Water and Wastewater Services. An International Comparison"). A maioria encara o problema com suas leis, que variam na maneira como são definidas.
É preciso aprender com experiências mal-sucedidas, até para não repetir os mesmos erros. Lugares como Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), La paz (Bolívia) Maputo (Moçambique), Atlanta (EUA), Budapeste (Hungria) fizeram o caminho inverso. Buscaram reestatização. Ocorreram problemas, como a procrastinação da almejada universalização - afinal, é clara a lógica de investimentos e lucros. Nessa perspectiva, a prioridade é aos "blocos" que possam garantir mais retorno, e dessa forma as assimetrias em função do acesso aos serviços podem vir a permanecer.
Já na Califórnia, nos EUA, onde ocorreu aumento de tarifa em 65% executado pela concessionária Apple Valley Ranchos, entre 2002 e 2015, a maioria da população declarou apoio à remunicipalização, e houve comprometimento da qualidade do serviço, aumento nos custos operacionais, além de dificuldades de fiscalização dos prestadores. Esses motivos contribuíram para a reversão do status da posse do abastecimento de água das mãos privadas para as do poder público, tendo que, em alguns casos, ressarcir as prestadoras para retomar o controle do serviço. Berlim precisou pagar o valor de 1,3 bilhão de euros readquirir o que antes já lhe pertencia.
Dois lados de uma mesma moeda
Mesmo diante de inúmeros casos de privatização terem sido fracassados, torcemos para que possamos focar nos bons exemplos, como Chile e Inglaterra. Eles aliaram inovação e reestruturação de gestão, proporcionando incrementos nos índices de eficiência.
Os interesses devem convergir para um mesmo ponto, para que o mercado enxergue a sociedade como prioridade horizontal, alcançando a todos. É preciso avaliar muito bem os riscos para iniciar um novo modelo de gestão. O planejamento será fundamental, principalmente para entender que muito da "falácia" da universalização - principalmente daqueles aspectos focados nos serviços de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgotos - está na falta de continuidade das políticas públicas e no uso inadequado do território brasileiro, tal como principal ferramenta para um planejamento urbano capaz de atender as necessidades básicas da população.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.
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